sábado, 27 de setembro de 2025

O Arco-íris no Concreto, de Sérgio Maggio

    Conic. Década de 70. Capital Federal. Cidade cinza. Chumbo. Em um subsolo um feixe de luz encandeia o Poder. Um Portal. Um respiro colorido costurado com paetês e temperado com purpurina. Corpos e mentes livres, sendo naturalmente o que querem ser. Trabalho e resistência, onde toda uma comunidade vivia seu sonho, na icônica boate New Aquarius, primeira boate LGBTQIA+  de Brasília, quando o termo sequer existia e os direitos era negados.

    Sérgio Maggio escava a memória de Brasília para nos apresentar sua alma subterrânea tendo como pano de fundo o encerramento das atividades do local e a busca de Martina, filha de dois frequentadores. Um belo trabalho de pesquisa que além de histórias é uma colcha de afetos e proteção, em uma rica dramaturgia baseada a intimidade de quem viveu aquelas noites; um mosaico de memórias com recortes visuais e sonoros. Um trabalho denso que abre espaço ao lúdico e à comédia, fazendo que a peça transcorra sem que se perceba que o tempo passe, ao mesmo tempo que diverte e emociona.

    A direção de Sérgio Maggio é ousada, afetiva e técnica, aplicando conceitos do audiovisual ao palco, tratando a memória como se estivesse sendo editada ao vivo. Surgem flashbacks com sutis diferenças de perspectiva, com novos detalhes. O afeto da direção transborda no comprometimento do elenco composto por atores-criadores, presentes em várias camadas de suas interpretações, os três muito fortes e inteiros em cena.

    Hugo Leonardo é pura potência como Mona Mone de Liz Taylor, uma entidade cênica que homenageia as lendárias Francis Taylor e Laura di Vision, representando as que vieram antes e abriram os caminhos. Em contraponto, Pedro Olivo, que também assina a maquiagem, traz a jovialidade e a feminilidade de Luna, encarnando com uma leveza que encanta e desafia o inevitável conflito de gerações de drags. Adentrando esse universo, a versatilidade de Maria Leo Araruna interpretando a jornalista Martina e a “sapatão” Help. O processo criativo se revela em sua mais bela forma na fusão do pessoal com a ficção, um momento em que depoimentos e dramaturgia se misturam e nos capturam, especialmente quando a peça tem a coragem de dar voz à "criança viada", à memória de uma identidade que floresce na infância, muitas vezes em silêncio e solidão. Interessante também o debate sobre etarismo na cena  LGBTQIA+ e os conflitos geracionais.

    A montagem é uma imersão. Os figurinos e o cenário, assinados por Jones Schneider colorem o que a cidade oficial insiste em negar; a iluminação pulsa, recortando as cenas e a trilha sonora é uma máquina do tempo, cada canção celebra a memória de uma geração que, literalmente, dançava para sobreviver. Arco-íris no Concreto é uma peça divertida, que nos faz rir, se emocionar e refletir, um grito colorido cheio de boas energias que ecoa para nos lembrar e mostrar que a memória de uma comunidade também se define pelo brilho e pela festa, armas de luta e resistência. 


    Por fim, recomendo o documentário "Um Salto Alto - A História da Arte Transformista do Distrito Federal", de LuShonda, que aborda e homenageia o Templo que inspira a peça e, principalmente, as pessoas que desbravaram os tempos de chumbo, trazendo luz.

 O arco-íris sempre vai romper o concreto, furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, parafraseando Drummond


Fotos: divulgação


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