quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cena Contemporânea – CCBB Brasília – 21 e 22/out/2023


        A 24ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 17 a 29 de outubro/2023 no CCBB Brasília, um dos festivais mais importantes do país, trouxe uma das principais Companhias de Teatro, a Cia Dos à Deux, que comemora seus 25 anos em grande estilo, com o espetáculo poema “Enquanto você voava, eu criava raízes”, que investiga o abismo em suas múltiplas vertentes e dimensões.



        Aqui estamos, em queda livre, para todas as direções, buscando tatear e entender essa experiência, sem saber se caímos ou voamos mais alto, construindo nosso sonho e nosso pesadelo, como crianças. O espetáculo que fala sem palavras, deixa a plateia também sem palavras, em uma troca constante, que se inicia na trilha sonora que se funde ao silêncio, que transpassa a sombra e a luz, usando como linguagem os corpos que são figurinos e estados, nada é absoluto, nada é estável, nada é óbvio.

        Toda essa viagem teatral e metafísica é realizada através de um Portal, que traz uma experiência única ao público, que tem a chance de criar sua própria história nessa obra aberta, de se jogar em seu próprio abismo de sensações, em seus vazios, criando raízes, voando, se despedindo algumas vezes da razão para poder mergulhar, encarar e escancarar o seu eu interior, tocando as feridas que podem ou não ter a chance de cura.


        A parte técnica é sempre tratada com primor: a trilha sonora e a sonoplastia são como moldura, a iluminação e a paleta de cores trazem elementos para compor a imaginação do público, o uso do audiovisual e muito do cinema trazido como elemento essencial, além do trabalho corporal e gestual que é uma marca muito forte da Cia, que tem uma assinatura própria, deixando registrada a Dos à Deux no Universo Teatral. 



        “Enquanto você voava, eu criava raízes” marca a busca de André Curti e Artur Luanda Ribeiro pela simbiose da dupla, que ao mesmo tempo que estão em locais diferentes em grande parte das cenas, estão, o tempo inteiro, conectados e buscando ser um só, um duplo. Marca também a coragem de fazer a Arte da forma que entende que deva ser feita, investigando, experimentando, nunca se repetindo, criando e montando mais uma obra memorável, uma ruptura na linearidade, se jogando em um abismo, tocando cada vez mais fundo suas raízes, para poder voar mais alto.



        Obrigado ao Cena Contemporânea por existir e resistir nesta longa caminhada, trazendo e produzindo espetáculos sempre especiais e ótimas oficinas, formando plateia, contribuindo para colocar o Teatro no lugar de evidência que merece estar.


Enquanto eles estão em cena, nós sonhamos!


        Página do Festival

        Instagram do Festival

        Instagram da Cia Dos à Deux 

        Teaser  

      

        Fotos: Humberto Araújo 


        Agradecimentos:

        Carmen Moretzsohn  

        Guilherme Reis 

        Sérgio Maggio 


       Crítica de 2019 sobre outro espetáculo da Cia Dos à Deux

 








domingo, 20 de agosto de 2023

O Último Tango – Santiago Serrano – CCBB Brasília

Duas solidões que se unem, um sonho. Antônio e Manuel. O tempo e a arte. Os risos e as lágrimas. A ficção e a realidade. O palco e a vida.  Os aplausos e a cortina que se fecha. A cortina que está prestes a se fechar e a saída que se abre. Existir e Resistir. A dualidade, síntese da trajetória humana ao som do Tango, a música que entra na alma e desperta sentimentos e emoções. 

        Um senhor octogenário que começa a apresentar lapsos frequentes de memória, viúvo e morando sozinho, sendo visitado por filhos que estão mais preocupados com a comodidade de cuidar do que com a felicidade e autonomia de quem entendem cuidar. Um homem de meia idade que anda com a sua mala que cabe tudo de material que lhe restou, um sobrevivente que não pode parar, um artista de rua. Um encontro que mudaria para sempre as duas vidas já cansadas e com poucas perspectivas.


O espetáculo discute temas importantes como o etarismo, a homofobia, o racismo, o racismo religioso, preconceitos em suas mais variadas vertentes, de uma forma profunda e ao mesmo tempo leve, com muita emoção, mas também com bom humor, flutuando pelas questões sociais e existenciais do nosso tempo. Uma poesia sobre o hoje, sobre ser, sobre todos nós, sobre a importância da solidariedade, sobre ser humano e o inevitável, envelhecer; mas principalmente sobre manter a chama da vida acesa e buscar caminhos.

Em relação ao etarismo, a peça é uma mensagem sobre a dor dos corpos idosos que  paulatinamente vão deixando de ser tocados, a viuvez como a orfandade da maturidade, a falta de autonomia, o distanciamento dos filhos e netos, entre outras agruras; mas também sobre as possibilidades de mudar o que parece estar definido e as mudanças de perspectivas, sobre viver o quanto nos restar, mas principalmente sobre o hoje e o que significa e a importância de estar vivo.


As soluções cênicas são interessantes, entre elas a possibilidade do público vivenciar os sonhos, que se mantém vivo; alguns recursos como a repetição de cenas foi muito bem aproveitado e executado, dando ideia permanência e rotina; os recursos audiovisuais mostraram um Tango Negro e Dança Afro Contemporânea, evidenciando ainda mais a diversidade da produção.

      O cenário é intimista e convida o espectador a adentrar junto com Manoel a casa de Antônio, o viúvo, apaixonado por sua mulher Elvira, portenha, amante do Tango, executado ao vivo, em uma trilha sonora com músicas de Carlos Gardel, Astor Piazzolla, Nelson Gonçalves e pontos de Umbanda, remetendo à origem negra do Tango.


A atuação de Chico Sant´anna é memorável, um mergulho na alma da personagem, uma forma de atuar que encanta e traz o público para dentro da cena, em cada trejeito, em cada gesto, cada marcação, cada fala, um trabalho sofisticado sobre o que é ser ator, um Homem de Teatro que se entrega em cena e vive aquilo tudo, sendo visível no rosto do público tamanha luz. Jones Abreu Schneider faz o contraponto; sua personagem é o apoio de toda a história, que se funde com seu sangue nos olhos em cena, a personificação da resistência do artista e da arte, a raça, o fogo, que também nos ilumina. Uma dança. Um Tango.



A dramaturgia de Santiago Serrano é profícua e atravessa gerações, tem um estilo próprio e uma assinatura, suas personagens são sempre densas, cheias de camadas e de humanidade, suas peças sempre levam a reflexão sobre o ser humano, o que fazemos aqui e como podemos ser melhores, uma produção de textos em profusão e qualidade, que nunca se repete nem fica datado. A direção de Sérgio Maggio é orgânica e limpa, preenchendo o texto de Santiago em uma montagem linda e cuidadosa, feita com muita vontade e profissionalismo, também uma dança, Dramaturgo e Diretor, um Tango!

A importância de um abraço e de se emocionar!


Ficha técnica: clique aqui

Instagram da peça: clique aqui

Fotos: Hugo Rila


domingo, 23 de julho de 2023

Cabelos Arrepiados – CCBB Brasília

        O lúdico, o sonho, o medo, os sustos; o universo sobrenatural em cena. No palco as angústias das crianças dos nossos dias, com seus hábitos noturnos que imitam adultos, quase ninguém consegue dormir bem, com a quantidade de distrações, telas e luzes; e essa privação é o que conduz as histórias belas e sombrias, carregadas de poesia e fantasia, inspirada na literatura fantástica e também na cinematografia de Tim Burton.

  

        A opereta infantojuvenil é executada ao vivo ao som de um belíssimo e onipresente piano e com vozes dos atores que além de representar, manipulam bonecos, tocam instrumentos, incluindo uma guitarra, no melhor ao estilo Metallica, contando os sonhos de cinco crianças: Tico e seus pés, Cora e seus cabelos arrepiados, Flora e Dora unidas pelo ombro, Clara e seus cabelos louros e Ciro e os ladrões de sonhos.



        As atuações são consistentes e chamam o público ao mundo da noite já no início, com um desfile um tanto quanto fúnebre que prenuncia que algo assustador viria. O cenário é lúdico com um palco giratório com espirais, hipnótico. O figurino é belo e bem cuidado, trazendo delicadeza à peça, com tons antigos e clássico. A iluminação completa o mundo, ambientando a plateia aos sonhos.



        Interessante podermos assistir um grupo forte vindo do Norte, de Manaus – Amazônia, a Cia Buia de Teatro, que tem a oportunidade de circular pelo país mostrando sua arte em simbiose com o texto de Karen Acioly, uma das maiores dramaturgas infantojuvenis do país, em uma peça premiada e que traz discussões importantes sobre amizade, pais, desejos, autoimagem, consumismo exacerbado e meio ambiente.

Bons sonhos!


Instagram da Cia Buia Teatro: clique aqui

Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)

Fotos: Divulgação

domingo, 18 de junho de 2023

Ficcões – Vera Holtz

    

Uma peça épica, na qual os heróis somos nós, homo sapiens, com toda a nossa fragilidade exposta em um palco. O ser humano, aquele que pela capacidade de inventar tomou conta do planeta em busca de sobreviver e essa capacidade de imaginar, criar, crer e fazer crer que nos trouxe até aqui, do caos a um aglomerado de células, do acumulado de sonhos a um mundo cheio de coisas inventadas, ficções

    Inspirada no livro Sapiens, uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari, a peça apresenta ao público um recorte da obra, conduzindo à reflexão sobre nossa própria existência e sobre tudo o que nos cerca: leis, dinheiro, pátria, fronteiras, nações, religiões, deuses, ideologias, filosofias, sistemas de crenças, ficções


    Vera Holtz se inventa e se reiventa em cena, multiplicando identidades, sendo ela mesma o tempo todo, em uma interpretação de fragmentação, uma atriz de primeira grandeza e performer, deus e homem, trigo e fóssil, primata e asno, dona de casa e nômade, ela se estabelece em cena, realizando um pacto com o espectador ao explodir a quarta parede, em um espetáculo íntimo e cooperativo, que também está em constante construção, ficções.


    O trabalho de Rodrigo Portella (autor e diretor) e Felipe Heráclito (idealizador) é muito cuidadoso. Além da preparação de Vera e do texto, chama atenção o cenário, composto por uma pedra gigante que viaja durante a peça e por uma moldura que enquadra e desenquadra nossa breve história. Acompanhando tudo isso, a trilha sonora é feita ao vivo, pelas cordas de sons belos e limpos de Federico Puppi, que participa das cenas de diversas formas, assim como sua música que traz novas camadas ao espetáculo, duelando contra o silêncio, ficções.


    O feminino é visível em cena, mesmo que não seja perceptível a olho nu a todos, em uma luta contra a ordem patriarcal, aquela mulher tão forte representando todos nós em nosso caminhar através dos tempos; a força da mulher que em sua viagem teatral, nos convidou a mergulhar em nós mesmos, fugindo da automatização do pensamento em busca de novos caminhos, novas f(r)icções, isto não é ficção.

Ficções é uma peça que transcende o palco.


    Ingressos: clique aqui

    Instagram da peça: clique aqui

    Agradecimentos: Kátia Turra (Tátika Turra Comunicação)

    Fotos: Divulgação



    Nota para a despedida, dia 10/06/2023, de um gigante do nosso Teatro, Alexandre Ribondi, que do alto de seus 50 anos de cena, sempre recebia todos com um belo sorriso e carinho, acolhendo todos que o procurassem. Um grande artista e uma grande pessoa, cheio de projetos culturais e sempre lutando bravamente pelos direitos da comunidade LGTQIAP+.

    Vai fazer muita falta!

    Que o seu legado siga nos inspirando.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Nasci para ser Dercy, com Grace Gianoukas – Teatro Unip



    De Madalena para o Mundo, a trajetória de Dolores Gonçalves Costa, a eterna Dercy Gonçalves, que se materializa em cena de forma humanizada, divertida e emocionante, na memorável e grandiosa atuação de Grace Gianoukas. Um trabalho de pesquisa intenso e de muita coragem, que tem o mote na história de uma atriz que vai fazer um teste para interpretar Dercy em um filme e não gosta do roteiro.

    A peça começou a tomar forma com o convite do dramaturgo e diretor à atriz, que de início estranhou e se questionou sobre a possibilidade de dar certo, mal sabendo que o espetáculo estouraria e rodaria pelo país, com perspectivas de ficar muito tempo em cartaz. Um projeto lindo, certeiro e arrebatador, que joga luz em uma das maiores personalidades do país e que teve poucas homenagens à sua altura como esta.

   Da luta para sair de sua pequena cidade no interior por ser rejeitada e atacada apenas por ser diferente, passando pelo Teatro de Revista, o enfrentamento contra a ditadura, o cuidado com a sua filha, as histórias de vida de uma mulher pioneira em várias frentes, no emponderamento feminino à revolução no mundo do teatro. Dercy foi uma mulher muito além de seu tempo e do que o imaginário popular enxergava, e isso é mostrado muito bem em palco, passando a limpo e dando a chance ao público de expandir seus conceitos sobre ela, rir, se emocionar e refletir.

    Muito além também, é a interpretação de Grace Gianoukas, que passeia em cena transitando da atriz que vai fazer o teste para interpretar Dercy até ser tomada de forma crescente pela lenda. Impressiona a transmutação em fração de segundos, uma troca de luz, um piscar de olhos e estávamos diante da personagem que ela queria, não só de Dercy, mas de outros que contracenavam no monólogo. Nota para o domínio da cena e do público, para o controle ao contracenar com a voz em off. Sempre rompendo padrões e expectativas, assim como Dercy, Grace Gianoukas é uma das grandes artistas deste país.

    A parte técnica funciona muito bem também. O cenário com os holofotes e o letreiro ajudam a contar a história de uma mulher que nasceu para ser livre e para brilhar. A comédia como escudo contra a tristeza, a hipocrisia e o preconceito. Que falta que ela faz e como é bom ter presenciado esses momentos. E quem não gostou que vá à merda!

    Grace Gianoukas nasceu para ser Dercy!



    Instagram da peça: clique aqui

    Agradecimentos: Rodrigo Machado (Território Comunicação) e André Deca (Deca Produções

    Fotos: Divulgação