quarta-feira, 10 de abril de 2024

Prisioneiro 12.207 – de Bruno Estrela – Teatro dos Bancários/Brasília/DF

    A memória revisitada para não ser repetida. Sente-se o choque. A dor em cena. A desumanização. A memória sentida para não ser esquecida. Luz no chumbo. Não pouparam nem o som do vinil. Não pouparam nem o vendedor de discos. Um homem preso em uma cela do DOI-CODI. Na mão de assassinos. A sofrer e sonhar, imerso em alucinações, mas sem jamais perder a capacidade de suavizar sua dura vida nos porões de uma covarde ditadura. 


    Inspirada em pesquisa sobre a Comissão da Verdade, a peça é uma homenagem aos que não se calaram e um alerta para os que aqui estão. Ato desprezível, a tortura. Institucionalizada. Uma mancha a envergonhar para sempre. Uma história que aconteceu ontem e não pode ser jamais naturalizada ou relativizada. Sem anistia.



    Bruno Estrela tem uma atuação marcante na pele de Alex, cujo crime era vender discos de vinil. O ator se joga de forma visceral em sua própria dramaturgia, inteiro em cena. O trabalho corporal é intenso e exaustivo, nota-se que há uma grande preparação. Se consegue ver o ardor e as marcas da personagem, em uma performance memorável. Sangue, suor e lágrimas, sem perder a ternura. Em cada cena envolve o espectador em sua cela, fazendo ser parte de toda aquela injusta e cruel solidão.


    Nem só de doer vivemos, mesmo em um cubículo imundo ou convivendo com covardes torturadores, menores que os ratos que são instrumento de tortura e companhia, temos a possibilidade de receber visita como a de Martina (Silvia Viana), o contraponto, o amor e ódio, a chance de ver o mundo lá fora, a esperança quando tudo já se perdeu, a vida que se passou e volta. Uma mulher que também sofreu os horrores. Um ser etéreo, lembrando personagens do Bardo. Uma atuação marcada pelo olhar desafiador e o jogo de palavras. 


    Apesar da dor, o lúdico também está em cena; Alex não se resume ao que seus torturadores querem. Ele é maior que eles. Ele ainda é humano, muito mais do que os que o desumanizaram. As cores dele brilham mais que qualquer tiro de fuzil; e a iluminação pinta esse quadro com bastante realce e contraste. A cenografia é interessante e funcional, permitindo o desenvolvimento de soluções cênicas, mesmo entre correntes, celas e cadafalso. A bela trilha sonora é cantada ao vivo por Gaivota Naves e Guilherme Cobelo traz a suavidade e a direção cuidadosa dá ritmo e camadas ao espetáculo, que surpreende em cada cena, um trabalho conjunto de André Amahro, Bruno Estrela e Silvia Viana.


    Que o grito do Prisioneiro 12.207 ecoe!  


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    Ficha técnica

    Instagram de Bruno Estrela

    Fotos: Cleiton do Carmo

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Trilogia Grande Sertão: Veredas – Riobaldo – Teatro Brasília Shopping

   

        Travessia de uma vida. Um mergulho no clássico de Guimarães Rosa. Frente a frente com Riobaldo: seus amores, paixões e afetos; ilusões, desilusões, feitos, pactos e avessos de sua existência. Um homem humano que abre sua vida a nós, ilustres desconhecidos, ávidos leitores a escutá-lo, ávidos ouvintes a ler tudo o que ele tem a dizer. E ele conta tudo que foi e viu.

        Profundo conhecedor da obra do escritor, Gilson de Barros nos conduz o espetáculo flutuando apenas pela presença da palavra, transformando o livro em uma viagem cênica que forma na mente do leitor as paisagens e vivência do sertanejo; um trabalho que magnetiza desde o início, ao se despir o ator de si e se encher de Riobaldo, em uma notável transformação física, transmutando-se do olhar aos gestos e da forma de se expressar.

        Em estado de atenção, a plateia se entrega e acompanha a trajetória contada por Riobaldo: alguns aficionados pela obra, se inundam de sertão pela possibilidade de visualizar a leitura em cena; outros, com a chance de ter um contato maior com a obra do que já tiveram, multiplicam as possibilidades de acesso ao universo do autor; certamente, nenhum deles deixou de viver e vivenciar cada detalhe do que presenciaram.

 
    
     Indicada ao prêmio Shell de melhor ator e melhor dramaturgia, a peça, que inaugura a trilogia, foi concebida de forma independente por Gilson de Barros há cerca de 4 anos, colocando em perspectiva as relações afetivas do ex-jagunço, agora fazendeiro. De seu amigo Diadorim, o aprendizado, a ambiguidade e o seu maior afeto; da prostituta  Nhorinhá, a paixão carnal, ainda que tenham se deitado apenas uma noite, como nos conta; e de  esposa Otacília, o porto seguro, o que entende ser sua redenção. Uma imensidão de pactos e escolhas, como a vida.


        A direção do Mestre Amir Haddad leva o espetáculo para dentro do livro, sendo sua ideia a forma de fazer o teatro como se livro fosse, um homem contando sua vida e nada mais, utilizando a técnica da interpretação narrativa, que foi levada ao extremo e apresentada com maestria pelo ator. A trilogia se completa com o “O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”, que trata da dialética do bem e do mal; e “O Julgamento de Zé Bebelo”, sobre justiça.

        Travessia de uma peça. Imaginei a peça circulando em povoados. A palavra povoando mentes, desbravando sertões, retornando à fonte de onde Guimarães Rosa colheu a matéria-prima para sua obra-prima. 


         

            Instagram da trilogia


            Ingressos:

            RIOBALDO

            Dia 06/04/2024 

            Dia 07/04/2024 


            O DIABO NA RUA NO MEIO DO REDEMUNHO

            Dia 12/04/2024 

            Dia 13/04/2024

            Dia 14/04/2024 


            Teatro Brasília Shopping

            Agradecimento: Renata Rezende

            Fotos: divulgação


quarta-feira, 3 de abril de 2024

As Crianças – Caixa Cultural Brasília

    

          Nosso quintal radioativo, ar de tragédia. A salvação pelos antigos. Redenção e reparação. Não se assuste, é uma peça sobre nós, aqueles que ou vão morrer ou envelhecer; sobre nós, os que herdaram e os que vão deixar heranças e legados, histórias e caos. Mas, não se assuste, é uma história sobre nós, moradores temporários desse lugar. Estar e não estar. Permanecer. Sumir. Se doar. Um passado que já não é. Um futuro que ninguém sabe que será.


        Reclusos em local distante, um casal de físicos nucleares aposentados recebe a visita de uma antiga amiga de trabalho, que os convida para algo inusitado: salvar as gerações que chegaram depois. Um triângulo escaleno que busca viver, se divertir e colocar suas questões em dia, antes do ato heroico. A vida vivida e não vivida que passa em cena, os destinos de nossa casa, as questões corriqueiras e urgentes que vão nos submergir.

         As Crianças é um espetáculo que cresce a medida que o tempo em cena transcorre, entre boas conversas, danças, brincadeiras, pequenos prazeres; e, a certa medida, não termina nos aplausos, mas nas reflexões que povoam a mente do espectador. Em cena, contemplamos a história viva do Teatro, no elenco composto por Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, atores premiados, que funcionam como engrenagens e nos mostra a força e o poder de transformação da Arte. Como não vidrar os olhos neles em cena e não resgatar memórias afetivas de personagens memoráveis da TV, como Irinéia de Tamanho Família.


        A opção do diretor Rodrigo Portella por uma montagem minimalista que projeta o cenário na mente do espectador, por meio da fala das rubricas, converge com as questões abordadas como consumo desenfreado e uso abusivo dos recursos naturais. Em cena, pouca cenografia, mas muita atuação e muita imaginação, se completando e formando a imagem em cada um. Um Teatro vivo, que salta em nossos olhos.

          Multipremiada, a montagem estreou em 2019, foi interrompida pela pandemia e voltou aos palcos para continuar ousando, mostrando que nunca abandonaremos nossas crianças enquanto a Arte pulsar. “Eu não sei querer menos.” Nem eles.


          Instagram da peça: As Crianças

          Fotos: divulgação

         Agradecimentos: Rodrigo Machado e Celso Lemos.