domingo, 26 de março de 2023

Malandro Batuqueiro – de Bruno Estrela – Teatro Pé Direito/DF

        Máscaras brancas contam a história de um país que deu certo para quem o projetou assim, um projeto longo e duradouro, baseado em opressão e sangue, máquina de moer. País que criminaliza a pobreza, a negritude, a brasilidade, que não cuida do seu povo. Consequência da herança colonial que até hoje está presente nas mentes e corpos, nas estruturas e nas leis, na falta de representatividade e na violência policial. 


        Enquanto uma bela revolução estava para acontecer no palco, um senhor negro de terno com um livro debaixo do braço, passava em frente a fila de espectadores, com total ar de reprovação e desprezo. Não! Ele não tem culpa de não conhecer a própria história. Algo precisa mudar. E o Teatro tem um papel fundamental nessa virada.

        Contando a volta ao Carnaval da Escola de Samba local depois da pandemia e da derrota de um governo racista, anticultura e antipovo, tendo como pano de fundo a figura mítica do malandro, com toda a sua força e também fragilidades, a peça apresenta sete moradores da Comunidade Jardim do Éden, pessoas que dividem um lar assim como dividem suas vidas, lutas, ilusões, sonhos, falta de oportunidades e as pequenas alegrias e tragédias cotidianas. 


        Em um texto ágil e abrangente, a peça é uma profusão de emoções ao espectador que vai se enxergar em vários momentos e refletir sobre seu papel na sociedade, mexendo em memórias afetivas, convidando realmente o espectador a viver o momento, gerando debates em diversas questões sociais urgentes e importantes. Nota para o elenco, que passou por um processo de audição, continha atores e dançarinos, cada um dando sua contribuição para a peça: Madelon Cabral com sua voz, carisma e explosão; Aline Araújo com sua força e presença que impressionam; Regina Sant´anna com seu afeto maternal; Jéssica Gonçalves com sua dança; Anttonio Carlos com sua ancestralidade e espírito da peça; Du Oliveira com sua experiência e versatilidade; e Lucas Rosa com sua dança e voz.        

        Projeto de 8 anos de Anttonio Carlos, homem do Samba, a peça virou realidade há cerca de 6 meses nas mãos do Dramaturgo e Diretor Bruno Estrela, tendo um processo de pesquisa e montagem interessante, que contou com a criação de um lar fictício para os atores, que conviviam como personagens, gerando riqueza e veracidade ao texto e as cenas, que se desenvolvem com soluções que aproveitam o local. 

        Como o samba que permeia a vida, a história é encenada com música ao vivo, por músicos do samba da capital, André Gomes, João Baptista e Valério Gabriel, dirigidos por Fábio Lima, que também assina a direção musical, com vocal dos atores com músicas de ícones como Zé Kéti, Cartola, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Alcione e Racionais. 

        Quantos Jardins do Éden existem? Lugares com nome de paraíso em que pessoas precisam lutar para sobreviver e buscar a felicidade do jeito que as permitem.

        Quantos senhores negros de terno com um livro debaixo do braço existem? Pessoas que acham que estão fazendo o que entendem que é o correto mas que conhecem sua própria história do jeito que as permitem.


        Ficha técnica: clique aqui

        Instagram da peça: clique aqui

        Canal da peça (com vídeos depoimento das personagens/atores): clique aqui

        Fotos: Maurício Sant´anna 


        Nota: Após a peça, ocorreu um rico, belo e democrático debate, com vozes plurais e diversas.


sábado, 25 de março de 2023

A Aforista – Cia. Stavis-Damaceno – CCBB/DF – Em cartaz em Brasília até 09/04/2023


   

       Enquanto ando, penso. Escrevo sobre a peça que caminha sem precisar sair do lugar. Uma peça que flui como a vida, como um rio tortuoso, que parece estar sempre no mesmo lugar, mas nunca está. Caminhando para o enterro de um amigo da faculdade de música, uma ex aspirante a virtuose do piano, anda e pensa e escreve e fala sobre o que viveu ao lado de um colega gênio da música e outro colega que era bom, mas não era um gênio. Uma história de três protagonistas/coadjuvantes: A Aforista, o Gênio e o Náufrago. 



        Enquanto ando, penso. Escrevo sobre a peça que trata da plenitude e do fracasso, das escolhas e das influências, da vida e da morte, ciclos de dualidade. Caminhando sem parar ao som do piano, a Aforista pensa e escreve, por que o texto sem música seria um erro e a vida sem música também seria um erro, ela escreve e anda e pensa, anda para organizar seus pensamentos e continuar a andar, andar sem parar, um texto aforista de fôlego, tão possível como caminhar sem andar.



        Enquanto ando, penso. Escrevo sobre a peça que representa a vida falando da morte, cicatrizes, egos, feridas, contadas por mãos que rabiscam o infinito, em meio ao duelo de duas virtuoses do piano, que a acompanham. Um espetáculo com múltiplas camadas e dimensões, em uma das maiores atuações que já vi em um palco, a palavra como ação, o controle absoluto do nobre ofício, uma experiência inesquecível. Impressiona o trabalho da atriz Rosana Stavis ao mergulhar na personagem e levar a plateia junto, em cerca de 90 minutos de tirar o fôlego do público, uma aula sobre o que é ser ator, em toda a sua plenitude. Ao final, assista ao vídeo para entender o tamanho da artista no nosso Teatro.



        Enquanto ando, penso. Escrevo sobre a peça em que o figurino faz parte do cenário,  assim como a iluminação e a música, composta especialmente para o espetáculo, em uma simbiose que se retroalimenta, coordenada pela direção de Marcos Damaceno que faz tudo funcionar de forma perfeita.  Uma obra de arte!


A vida sem Teatro seria um erro!


Ingressos: clique aqui

Vídeo comemorativo da carreira de Rosana Stavis: clique aqui

Canal da  Cia. Stavis-Damaceno: https://www.youtube.com/@CiaStavisDamaceno

Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)

Fotos: Humberto Araújo

domingo, 5 de março de 2023

Molière – Uma comédia musical de Sabina Berman – com Matheus Nachtergaele – CCBB/DF – Em cartaz até 12/03/2023

           Rivais! 

       A disputa e o conflito entre a comédia e a tragédia, personificadas em dois gênios do Teatro: Molière e Racine, seu ex-pupilo, na França do Rei Sol, Luís XIV. A vida e a obra de Molière contadas por seu ex-pupilo e agora rival, a vida de quem viveu o sonho de ser um homem de teatro até as últimas consequências, o homem que fez rir, desafiou mecenas, nobreza e clero; e permanece eternamente vivo nos palcos.


        O espetáculo passeia na vida do grande dramaturgo, mostrando suas paixões,  conflitos, apostas, acertos, erros, vitórias e decepções, risos e choros, apresentações e censuras, os dois lados de diversas moedas; as máscaras do Teatro. A plateia consegue saborear e viver cada segundo das 2 horas e 20 minutos de apresentação, que passam rápido demais, como se o tempo tivesse parado, para estar ali, na França do século XVII.


        A peça traz interessantes reflexões pessoais e coletivas, sobre a importância da comédia, sobre a forma de mostrar o mundo e a sociedade em um palco, sobre qual o preço da não submissão da arte aos poderosos, sobre como estar alerta e forte para combater a censura e a estupidez. Fica evidente ao espectador, a força da obra, que tem muito cuidado estético, sonoro e no ofício do ator, um espetáculo de múltiplas camadas e de resultado incrível, daquelas peças que ficam na mente de quem ama Teatro.


        Sob a precisa e intensa direção de Diego Fortes, as cenas funcionam como uma engrenagem, conectadas, sem espaços desnecessários. O palco o tempo todo em movimento, com diversas cenas acontecendo ao mesmo tempo. Há também o metatexto, o teatro dentro do teatro, como não poderia deixar de ser, por se tratar da vida de um gênio da nobre arte. As atuações são interessantíssimas, a de Matheus Nachtergaele é uma homenagem à Molière, sendo visível a forma generosa que ele divide o palco. Uma curiosidade: assim como Molière, Matheus, em entrevistas, declarou uma certa resistência ao fazer comédia no Teatro, e da mesma forma que o homenageado, se jogou no abismo no palco.


        Além do protagonista, o público é presentado com as impecáveis atuações de Elcio Nogueira Seixas (Racine), Renato Borghi  (Arcebispo Péréfixe), Josie Antello (Rei Sol), Carol Carreira (Armande), Rafael Camargo (La Fontaine), Luciana Borghi (Madeleine e Rainha Mãe), Jorge Hissa (Gonzago), Regina França (Mademoiselle Du Parc e Madame Parnelle) e Diogo Brandão (Baron e Primeiro Médico). O cenário e o figurino são bem detalhistas e trazem uma grandiosidade a peça. A trilha sonora, com músicas de Caetano Veloso, é executada ao vivo, por grandes músicos conduzidos pelo maestro Lully (Fábio Cardoso).



        Uma peça indispensável, para quem viveu os últimos 4 anos em um país com a Democracia e a Cultura ameaçadas pelo mesmo tipo de políticos e religiosos, tanto hipócritas como corruptos, que perseguiram a Arte de Molière. Como é bom ver o nosso País e o nosso Teatro se reconstruir e voltar a florescer, trazendo mais leveza, permitindo o riso ao povo, em que pese a dureza do cotidiano, substituindo a dor pelo prazer de ter a chance de ser feliz.


A Arte sempre vence!


Ingressos: clique aqui

Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)

Fotos: divulgação



Meu Deus!

ou

Para Molière, com carinho


Se sua fé fosse uma utopia?

Se no lugar de templos suas esquinas tivessem teatros?

Se seu deus personificado fosse uma personagem?

Se seus dogmas fossem poesias?


Se sua prece fosse diálogo?

Se seus bancos fossem plateia?

Se seus profetas fossem dramaturgos?

Se seus pecados fossem parte do jogo cênico?


Se seus evangelhos fossem peças que nos mostram o caminho?

Se sua luz fosse holofotes?

Se seus sacerdotes fossem atores e atrizes?

Se a vida eterna terminasse sempre em aplausos?


Sejam bem-vindos ao nosso Reino


Rodrigo Ferret – 03/08/2020


sábado, 4 de março de 2023

Ninguém Dirá Que é Tarde Demais – Texto de Pedro Medina – Com Arlete Salles, Edwin Luisi, Alexandre Barbalho e Pedro Medina – Direção de Amir Haddad – Teatro Royal Tulip – Em cartaz em Brasília de 03 a 05/03/2023

    Dança da vida, poesia contida em ilhas de solidão provocadas pelo que não se via; cada um buscando alternativas em vidas suspensas e tentando sobreviver, para poder retomar, quem sabe, o que realmente importa. Arlete Salles e Edwin Luisi protagonizam uma peça leve, divertida e reflexiva, uma celebração da volta à vida e à volta aos palcos, neste lugar tão especial chamado Teatro, que é a Arte do encontro, a Arte de se fazer presente, seja no palco ou na plateia. Nunca é tarde demais.


    O espetáculo nos convida a vivenciar a história, em plena quarentena da pandemia, de vizinhos que se odeiam sem se conhecer, que criam aversão por imaginar quem é aquela pessoa irritante que está do outro lado da parede. Transitando entre o humor e o drama, fazendo rir e emocionar, a peça é uma poesia ao estar vivo, ao poder compartilhar, à nova chance de existir e fazer a vida fazer sentido, encarando a verdade de frente, desafiando o tempo, a sociedade, a idade, as dificuldades e o que esperam de nós. Nunca é tarde demais.


    Das incertezas ao conflito de gerações, da solidão ao amor na terceira idade, da vida não vivida à vida para viver, do risco à coragem de arriscar, do humor ao drama, do drama ao humor, das surpresas às revelações. O público vai sendo capturado pela história que tem uma luxuosa simplicidade, que a engrandece, em cenas marcadas pelo diálogo. realmente impressiona presenciar as atuações de Arlete Salles e Edwin Luisi, vocações e paixões inabaláveis pelo ofício de ser artista, que se fortalecem com o tempo e são um presente para o público. Somos, sim, privilegiados em ver gigantes do nosso teatro em cena, com a direção do lendário Amir Haddad. É um acontecimento, é o desejo de viver posto em prática. Nunca é tarde demais.


    Uma curiosidade: a peça é uma verdadeira produção em família: Arlete Salles, seu filho Alexandre Barbalho (ator) e seu neto Pedro Medina (ator e dramaturgo), tendo ainda na direção musical, Lúcio Mauro Filho (enteado), responsável pela bela trilha sonora, composta, entre outras, por canções de Tom Jobim, Chiquinha Gonzaga e Debussy.


    Participamos de uma noite amorosa, acolhedora, que mostra a necessidade de se relacionar, de se encontrar e de pensar. Assim como os grandes artistas estão voltando aos palcos, nosso blog volta hoje, para poder contar a história do Teatro em Brasília, de forma apaixonada e verdadeira, trazendo o leitor para a plateia. Nunca é tarde demais.


“O Teatro cura”

Amir Haddad


    Ficha técnica e ingressos: clique aqui

    Fotos: Guga Melgar

    Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)



Mar a dentro

Ver esses tubarões nesse pequeno aquário

É uma das coisas mais tristes que há

Nessas gaiolas de vidro


Você pode imaginar como eles são na natureza

Mas jamais irá sentir o que senti quando mergulhei com eles

Mesmo que a certa distância

A uns 3 metros

Da caixa cênica 


Rodrigo Ferret – 04/12/2020