quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Macacos – Clayton Nascimento – Cena Contemporânea – CCBB Brasília


MA CA COS!!! MA CA COS!!! MA CA COS!!! 

    O eco de Clayton Nascimento, um gigante dos palcos e da vida, continua a reverberar, agora encerrando a 24ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, um dos festivais mais importantes do país. Espetáculo que começou como cena curta em 2016, que tive a honra de presenciar em 2019, passou 6 anos sendo gestada e lapidada até ganhar projeção nacional, lotar todos os teatros em vários Estados e receber os maiores prêmios das artes cênicas em 2023, como o Prêmio Shell de Teatro e o troféu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), algo inédito para uma monólogo de um artista negro, sendo o ator mais novo da história do Teatro Brasileiro a ganhar esses dois prêmios no mesmo ano; além diversos elogios como o de Fernanda Montenegro, que o chamou de fenômeno.


     Um ator em cena, sem figurino, sem cenário, um palco vazio que vai sendo preenchido por um corpo preto e periférico até tomar a plateia ao longo de quase 3 horas, transpassando o teatro e impactando para sempre a memória do espectador, por trazer tanta reflexão, nos contando a História do Brasil nosso país sob outro olhar, denunciando o genocídio do povo negro em uma nação que oficialmente faz a opção pelo esquecimento e pela busca de uma hipócrita e conveniente paz branca.

    Clayton Nascimento não é um só em cena, são incontáveis personagens; também não está só no palco, representa milhões de pessoas que tiveram direitos básicos negados ao longo do tempo, mostrando como tudo está interligado e o passado não resolvido tem graves  consequências nos dias atuais. Uma aula de História, de Vida, de Perseverança e de Arte. Um Teatro que expõe e compartilha o constrangimento do racismo e seus desdobramentos, rasura o cânone, revira o status quo, ocupa espaços de poder, encanta e alimenta o povo de conhecimento e coragem, uma Revolução, um acontecimento, a representatividade conquistada. 


        O espetáculo não deixa ninguém para trás, rememora pessoas fundamentais como Ruth de Souza, Léa Garcia, Elza Soares, Machado de Assis, Abdias do Nascimento, o Dragão do Mar e outros; além dos semeadores do artista, seus pais, que o apoiaram em todos os momentos, acreditando e pedindo para que ele perseverasse sem saber onde todos aqueles sonhos o levariam, e ele chegou, para ficar, não só por ele, mas pelas que vieram, pelos seus contemporâneos e pelos que virão.


        Tecnicamente, a peça mostra um impressionante trabalho de corpo e voz, são 3 horas em cena, sem falhas, sem buracos no palco, sem perder o foco ou o fôlego, um exercício cênico que transcende. Uma peça com múltiplas camadas, levando do riso à emoção, do contemplar ao choque, em curtos espaços de tempo. Não raro, ouve-se soluços na plateia; lágrimas, sal, o mesmo sal que dá nome a Companhia e foi leito de morte de milhões de pessoas em uma das maiores e mais longas diásporas da História mundial.


    Interessante a reflexão sobre o ensino do Teatro na faculdade se iniciar com os gregos, em que pese os africanos já terem Teatro muitos séculos antes. Traço um paralelo com o estudo do Direito, que também se inicia com os gregos; mais um de tantos apagamentos que se vivencia sem qualquer reflexão nas Universidades, um apagamento sistemático que nega o pensar de forma diversa. Outra reflexão interessante, a forma como os artistas pretos podem ser aplaudidos e aclamados em um palco e ao estarem anônimos em outros espaços serem discriminados. Como disse Eduardo Galeano: O mundo se divide entre indignos e indignados; o povo preto é protagonista dessa luta, mas todos nós somos responsáveis.



    Uma breve história pessoal sobre Macacos: é a terceira vez que assisto ao espetáculo, em um terceiro formato diferente. Assisti pela primeira vez em um festival nacional de cenas curtas, o Breves Cenas, em 2019, no qual foi eleita pelo público a melhor cena; depois, assisti on line, durante a pandemia, em 2020, com cerca de 2 horas, em um formato difícil que ainda mantinha toda a potência; e agora, encerrando a trilogia, a peça completa, uma obra-prima.


   Macacos precisa rodar o país, ser visto pelo maior número de pessoas, multiplicando a reflexão, o pensar, arrebatando pessoas por onde passar. É uma obra que vai além, caminha para ser declarada oficialmente Patrimônio Cultural. 

    Importante registrar que Macacos faz parte da rede de proteção de mães assassinadas por policiais, levando suas histórias e rostos pelo país, como a Senhora Terezinha Maria de Jesus, que desde 2015 luta por justiça por seu filho, Eduardo, uma criança de 10 anos de idade que brincava de carrinho no quintal de casas quando foi alvejado na cabeça por um tiro de fuzil. Os policiais foram absolvidos por legítima defesa e o processo foi recentemente desarquivado por conta da pressão gerada pela peça. 

    Obrigado, mais uma vez, ao Cena Contemporânea por existir e resistir nesta longa caminhada, trazendo e produzindo espetáculos sempre especiais e ótimas oficinas, formando plateia, contribuindo para colocar o Teatro no lugar de evidência que merece estar.



A Paz e a História não podem ser exclusivamente brancas.

Dedico o texto desta crítica ao povo preto brasileiro e ao povo palestino.



Um príncipe me contou que não existia racismo no Brasil

Eu contei para ele que não existia príncipe no Brasil

Não se muda a história negando fatos

Nem se mudam os fatos para contar a história

O racismo embora seja a história, não se resume ao passado

Está presente em cada brasileiro

Somos fruto de um racismo estrutural que permeia a sociedade

Se duvida, olhe em volta

Se continua a duvidar, abra o jornal ou veja a TV

Se ainda duvida, pesquise melhor sobre a sua própria história 

Rodrigo Ferret – 18/06/2020

                                         

    Página do Festival

    Instagram do Festival

    Livro da peça (que atualmente foi adotado como livro didático em São Paulo)

    Instagram da Cia do Sal 

    Instagram da peça 

    Instagram do artista 


    Fotos: Humberto Araújo 


    Agradecimentos:

    Carmen Moretzsohn  

    Guilherme Reis 

    Sérgio Maggio 


    Outras críticas de peças do Teatro Negro:

    Cristiane Sobral

    Esperando Zumbi    

    Livro sobre Teatro Negro


    Leno Sacramento (BA)

    Nas Encruza 

    Livro Para Desgraça 


    Bruno Estrela (DF)

    Malandro Batuqueiro