quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Aux Pieds de la Lettre - Companhia Dos à Deux (Brasil/França) – Caixa Cultural – DF




Ter a oportunidade de assistir à Companhia Dos à Deux é sempre um privilégio e um prazer. Com um repertório de primeira linha baseado em pesquisas gestuais, o Grupo fundado em Paris em 1998, por André Curti e Artur Ribeiro, apresenta o quarto espetáculo de onze já montados http://www.dosadeux.com/?article160&lang=pt_br.



Escrever sobre peças do repertório da Companhia Dos à Deux é um grande desafio. Ao assistir, ficamos com a sensação imediata de que temos mais perguntas que respostas, mais dúvidas que certezas. Após uma reflexão mais profunda, que depende da vontade do espectador, passamos a entender com mais clareza os momentos que vivemos na plateia, como uma penumbra que vai se movendo e começamos a sentir que estávamos diante de uma obra de arte bem construída com uma marca própria e uma assinatura.



“Aux Pieds de la Lettre” é espetáculo atemporal, sempre atual, montado pela primeira vez em 2001,  que teve como base de pesquisa trabalhos artísticos desenvolvidos no Instituto Psiquiátrico Marcel Rivière (França). http://www.dosadeux.com/?article24&lang=pt_br

O mundo dos sonhos, da loucura e da imaginação, tudo isto está presente e vivo no espetáculo. O desejo de liberdade das personagens confinadas é latente, são como verdadeiras marionetes burlescas que tem a necessidade obsessiva e solidária de dar vazão aos seus desejos e manias. É a poética da loucura nos fazendo pensar na possibilidade do insólito.



O trabalho corporal é ponto alto da peça. Não é nada simples passar mais de uma hora em cena, atuando sem interrupção com uma coreografia e um sincronismo com níveis impressionantes de detalhes. Os movimentos são absolutamente perfeitos e orgânicos e em compasso com a trilha sonora, a iluminação e sonoplastia.




O cenário é composto por uma mesa versátil que participa das cenas e se transforma em diversos objetos que vão das necessidades mais básicas à redenção, além de uma bacia de água com diversas cartas rejeitadas em volta e cordas puxadas por roldanas que permitem as personagens fazerem trocas com o mundo externo.



Obrigado à Companhia Dos à Deux pelo presente no dia do Teatro. Parabéns pela arte, trabalho e profissionalismo que marcam a trajetória do grupo. Parabéns por encararem de frente o obscurantismo e montarem um espetáculo tão belo em tempo tão curto para produzir e divulgar, como no teatro gestual jamais calarão a Cultura.

Observação ao público: sugiro que se familiarize antes com a peça, lendo a ideia central no link da companhia, tendo em vista que se trata de teatro gestual,: http://www.dosadeux.com/?article163&lang=fr.

E lembre-se: “Quem vê o céu na água, não está longe de colocar os peixes nas árvores.”

Teatro da Caixa Cultural Brasília
Dias e horários: de 19 a 21 de setembro de 2019, às 20h, e dia 22, às 19h.

Fotos: Divulgação. 


domingo, 15 de setembro de 2019

Por que não vivemos? - Companhia Brasileira de Teatro - CCBB DF



A primeira peça de Tchekhov, escrita em 1878, esquecida, guardada inacabada em um cofre de um banco em Moscou até ser encontrada em 1920. Quase 100 anos separando sua redescoberta da montagem da Companhia Brasileira de Teatro. Tão atual que se ninguém falasse a respeito, jamais desconfiariam de ter sido escrita há tanto tempo. Tempo este que é uma das matérias primas de um dos maiores contistas e dramaturgos de todos os tempos.

O tempo é trabalhado em cena de diversas maneiras, desde a simples marcação de uma bola batendo na raquete de frescobol, na repetição de uma cena diversas vezes. Um tempo que não passa, mas ao mesmo tempo voa.


A ocupação não só do palco, mas de todo espaço teatral é feita com maestria. Com atores dividindo assentos com o público e o público ocupando lugares no palco. A quarta parede foi estilhaçada em nome da interatividade. Sensacional.

O tédio das personagens e as questões existenciais próprias do autor estão presentes na peça. Fazendo o espectador pensar, refletir, mas jamais se entediar. Por diversas vezes nos vemos ali neles. Por que não vivemos? Como poderia ter sido diferente?



A iluminação e o áudio visual são sincronizados com a interpretação dos atores de uma forma perfeitamente orgânica. Trunfo do diretor Márcio Abreu.

Há um equilíbrio entre as personagens, tendo todas de alguma forma importância fundamental à peça. Impressiona a presença de palco e força cênica de Rodrigo dos Santos, que interpreta Platonov, o herói e anti héroi, sobretudo humano, como todos nós. Camila Pitanga com sua doçura, talento e carisma interpreta, de forma generosa, a viúva Ana, contribuindo para que os demais atores brilhem como ela, em um trabalho de equipe, de time. Kauê Persona dá seu toque de comédia, mas indo no mais fundo drama quando necessário, interpretando o ingênuo e bonachão Serguei. Josi Lopes interpreta Sofia, com uma personalidade fortíssima e uma voz que não dá para explicar o quão incrível, só ouvindo ao vivo. Edson Rocha como o “cidadão de bem” Porfírio está impagável. Cris Larin, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarini completam de forma magistral o elenco.



Resultado final: 5 minutos de palmas, após 2 atos que ao todo possuem 150 minutos. É um feito. Uma aposta que deu muito certo, provando que o Teatro, embora os ignorantes tentem ignorá-lo, censurá-lo, sempre vai estar vivo, pulsante e de pé enquanto existirem artistas e plateia!!!



Obrigado pelo Reveillon antecipado e pela cerveja. Um projeto desse precisa ser celebrado.

CCBB DF
12 a 29 setembro, 2019
Quinta a domingo, às 19:30h

sábado, 14 de setembro de 2019

A Resistível Ascensão de ARTURO UI - Grupo Liquidificador - Espaço Cultural Renato Russo - DF



Um show de drag kings: Enzo DMX, Clint Esparradão, Walter Waleiro e Little Big. Quatro atrizes se revezando em 27 personagens, para nos contar a parábola teatral escrita por Brecht em 1941. A ascensão violenta, ditatorial e sangrenta de um gangster que veio do nada para tomar o poder em meio a uma crise. Essa estória poderia ser sobre gangs de Chicago, mas poderia também ser de um miliciano brasileiro, de um juiz ladrão, de Hitler ou qualquer outro projeto de ditadura. Gente que cresce em meio à crise jurando combater a corrupção.

O grupo liquidificador, com sua raiz performática, apresenta sua crítica política ácida e divertida sobre os tempos que estamos vivendo neste país, possibilitando refletir sobre os temas mais atuais e urgentes.



A subversão do patriarcado pelas atrizes nos faz pensar como são importantes a emancipação feminina, o respeito e a liberdade.



O cenário composto apenas por sacos de lixo e placas penduradas com nomes nos permite visualizar a cidade de Chicago e nos sentir dentro das cenas, em um exercício que representa um teatro verdadeiro no qual a criatividade tem preponderância sobre o dinheiro.



O que parece inicialmente ser uma grande brincadeira animada e pueril vai se transformando em uma peça com camadas e mais camadas de jogos teatrais e interpretações profissionais das atrizes, maravilhosxs Drag Kings, que nos fazem refletir e questionar, ter medo e lamentar, mas também buscar algo maior, lutar.



Destaque para o ímpeto da juventude das atrizes, levando a crer que o futuro do nosso teatro vai muito bem obrigado: Ana Quintas (Enzo DMX) com sua vitalidade e espontaneidade mostra que a força do palco vem do amor ao teatro. Fernanda Alpino (Clint Esparradão) estrela o gangster Arturo Ui com mãos de ferro, impondo toda a canalhice, covardia e estupidez dos vilões da vida real. Larissa Souza (Walter Waleiro) dá um show de versatilidade, indo personagens com estilos antagônicos de um segundo a outro com uma mudança sútil de expressão corporal. Nininha Albuquerque (Little Big) me deixou muito incomodado com a maldade de seu personagem principal, um capataz de Arturo Ui que segue ordens com perversidade. A Participação especial de Adriana Lodi é literalmente uma aula de interpretação, como um professor de teatro, tentando ensinar Arturo Ui.

Parabéns ao Espaço Cultural Renato Russo, por ser um dos templos de resistência do teatro candango neste tempo de milicianos, Chicago boys e censura. A arte sempre vai vencer!

Fotos de Nina Quintana

sábado, 13 de setembro de 2014

Misanthrofreak - Teatro Sesc Taguatinga - DF

Isso é Teatro?



Que peça mais estranha...era isso que martelava na minha cabeça ao sair do teatro. Isso e uma música do Bee Gees, que insistia em não sair dos meus ouvidos. Misanthrofreak é uma daquelas peças que o espectador leigo, porém curioso, começa a entender depois que ela termina, tamanha a sensação de estranhamento que causa. Não há muito sentido coerente em seu desenrolar, é um quebra cabeça que depende de boa vontade do espectador, mas quando extraída nela o que há de melhor, transforma-se em arte de primeira qualidade. Rodrigo Fischer encarna a solitária personagem, que tenta o tempo inteiro dialogar com o público, apresentar algo, mas nunca consegue chegar ao seu objetivo, tenta de todas as formas, chegando ao seu limite de angústia em vários momentos. Uma eterna reflexão sobre fracasso, a tentativa e erro, a solidão. Um mundo cinza, desencantado, que só é amenizado pelo uso da tecnologia presente na cena (que paradoxalmente amplifica a sensação de solidão) e pelo contato com público.

Comecei a entender melhor o que tinha presenciado, após pesquisar sobre a peça e descobrir que era inspirada na obra “O inominável” de Samuel Beckett, dramaturgo que apenas tive contato superficial com “Esperando Godot”. Li alguns artigos. Me chamou a atenção que em sua dramaturgia tudo termina e recomeça novamente. Uma estrutura cíclica e sem fim, da mesma forma que a personagem tenta se expressar e nunca consegue. Sempre o tempo estando presente, sempre o estado de espera falando mais alto, a contagem regressiva projetada em cena. Uma estética do precário. A personagem em cena, como as de Beckett, um ser despedaçado que aceita seu estado de ser transitório e estático. A lógica becketiniana subvertendo e diluindo os valores cristalizados do teatro tradicional, mostrando uma visão desencantada e pessimista sobre o mundo caótico e incompreensível, provocando estranhamento, um riso incômodo e sufocado, nos tornando parte daquela humanidade fracassada apresentada no palco.



Atravessamos a peça na expectativa de uma descompressão que não vem. Estava ai a chave para curtir e saborear o que havia de melhor da peça, perceber as intenções de Beckett e saber que como é complexa e fascinante sua dramaturgia, muito bem representada em Misanthrofreak. Peça que me apresentou a este universo e me fez aumentar o meu interesse sobre o genial dramaturgo. O maior legado desta peça é despertar o interesse neste tipo de dramaturgia através do estranhamento.

Presenciei uma interessante interação entre o Teatro, Cinema e Música, muito bem executada no palco, de forma orgânica, dentro da proposta da peça, realizada por meio da tecnologia manipulada pelo ator em cena. Diversas referências e homenagens a clássicos da 7ª arte e da música, trazendo nostalgia e uma dose de melancolia. Momentos de tênue e passageira felicidade como por exemplo a quebra da quarta parede com o público acolhe o ator, cantando com ele a bela e triste “I start a joke”, a música que não sai da cabeça, que tem muito a ver com este universo cíclico e sem fim.



No final, algo projetado em uma tela, soa como reflexão: Isso não é Teatro! Misanthrofreak é o Antiteatro, que de forma inteligente zomba das certezas e convenções.

Sim! Isso é Teatro. Teatro de alto nível. Bem elaborado, feito com um visível cuidado e muito trabalho físico e mental.



Obrigado por me apresentarem ao fascinante e perigoso mundo de Beckett. 

Teatro Paulo Autran - Sesc Taguatinga/DF – Brasil Dia: 13/09/2014 – Única apresentação 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Édipo - Companhia do Chapitô - Portugal - Caixa Cultural Brasília - DF

Local: Caixa Cultural Brasília – Brasília/DF - Brasil
Dia: 12/09/2014



Os Três de Tebas

Um grupo de Teatro Além Mar, uma oportunidade única de assistir a uma montagem europeia. Uma curiosidade quase infantil de observar atores atuando com sotaque luso. No  imaginário de um brasileiro seria algo, no mínimo engraçado, estranho. Antes de assistir qualquer peça, por opção, não leio nada sobre ela, nem procuro  conhecer o grupo. Gosto de me surpreender. 



Em Édipo, somada a grande curiosidade em  relação ao Teatro Português, minha expectativa era apenas assistir uma boa peça. A peça conta a clássica tragédia grega “Édipo o Rei”, de Sófocles. O Teatro grego, base  das Artes Cênicas, em sua origem contava com um elenco enorme, com cenários múltiplos e  gigantescos. Sabia que não seria uma peça suntuosa (nem gosto), mas quando cheguei ao espaço  cênico não havia cenário, apenas a caixa cênica com as três paredes cobertas de cortinas negras. 



Ao iniciar a peça, somos atraídos ao jeito próprio Chapitô de encenar um clássico. Em  poucos minutos me esqueço do sotaque, das palavras diferentes. A peça atrai de uma forma tão  interessante que, convidado, o espectador se entrega totalmente.  Apenas três atores (Jorge Cruz, Marta Cerqueira e Tiago Viegas), todo universo de  Édipo o Rei contido nas vozes e nos corpos deles. Tudo isso sem simplificação, sem economia.  A multiplicação dos atores através de diversos exercícios cênicos do mais alto nível técnico e  artístico. A criatividade sem fim da Companhia. 



Neste contexto, sentado da poltrona fui à Tebas, à Corinto, vi o oráculo de Delfos, vi um  bebê nascer por parto normal, ter seus pés amarrados, quebrados, levado ao cume da montanha,  vi pastores, reis, rainhas, a Esfinge com seu enigma indecifrável, vi um homem matar quatro  cavaleiros, vi cavalos. Todas as personagens que compõe o clássico estavam lá. Vi até ventar. Vi uma ovelha comer capim. Até o numeroso coro grego estava lá. O Édipo de Chapitô é o mais humano de todos os heróis. Um verdadeiro anti-herói, feito da mesma medida que nós, pessoas, somos. Ri bastante, me emocionei, refleti, desafiei a esfinge...viva o Rico Teatro Pobre idealizado por Grotowski, onde o menos é muito mais, mais do que se pode imaginar. Aqueles  70 minutos de atuação em palco vazio me dá a certeza que nenhuma tecnologia se compara com  a arte pura e simples em sua essência, que nenhum efeito especial de um filme ou TV se  compara com a magia do Teatro. 



O que presenciei foi algo que jamais esquecerei. Posso falar,  sem medo de errar, que Édipo, da Companhia Chapitô, foi uma das melhores e mais perfeitas  peças que já assisti. 

De arrepiar, literalmente.