Revisitar Beckett é estar frente ao espelho, observando a nossa sina de uma fuga que nunca iremos alcançar. É experimentar o trágico da condição humana, rir de forma envergonhada, mas nunca tola; e sempre ter a esperança que algo vai mudar, ainda que em vão. Assim, atravessamos a peça na expectativa de uma descompressão que não vem. A natureza nos esqueceu.
Nunca se engane com palhaços em cena; a nossa história, Fim de Partida, nunca será uma peça de humor, ainda que possamos rir de nós mesmo e ter momentos efêmeros de prazer. Rir da nossa forma de servir e sermos servidos, das nossas relações, dos jogos de poder que nos são impostos, ou que voluntariamente nos inserimos, e papéis que representamos. Eternas repetições. Não existe mais natureza.
Escrito em tempos de ruptura, o texto tem a atmosfera da desesperança da harmonia da convivência entre seres humanos. Vivendo em um buraco, um homem manipulador chamado Hamm, seu espólio (seus pais fantasmagóricos e sem pernas, Nagg e Nell, que vivem em latas de lixo) e Clov, o serviçal, o peão que pode se mover. Um jogo de xadrez em círculo. Um contínuo movimento para frente e para trás. O rei e o peão. Esta noite eu vi dentro do meu peito. Tinha uma imensa ferida.
A montagem é ousada e consegue atingir em cheio os espectadores mais atentos. Sensacional a simbiose entre pai e filho (Francisco e Victor Dornellas - Trupe Garnizé), interpretando Hamm e Clov, trazendo magia ao palco, misturando realidade e ficção. Afetos e conflitos. Um ator consagrado que supera tudo para estar em cena e seu filho, que com todo talento e grandiosidade, trilha seu próprio caminho nos palcos, sem esquecer do legado que carrega. O que você viu foi seu coração.
A direção de Eid Ribeiro é precisa e respeita a condição do interprete de Hamm, extraindo o melhor para as cenas, para exaltar a vida e a obra de arte do autor. Nota para o bom trabalho de João Santos e Marina Viana. A trilha sonora complementa de forma orgânica o espetáculo. O cenário cercado de livros, remete ao conhecimento, a única coisa que resta quando não temos mais nada. Os tons pastéis, a palidez, de todo o conjunto de maquiagem, figurinos e adereços, dão a sensação da ausência. As janelas altas demais, o sol fraco demais, o mar perto mas longe demais; tudo converge para o pequeno universo hermeticamente isolado. É um fim de dia como os outros, não é, Clov?
Beckett sempre surpreende! Uma viagem até o âmago do ser humano. Não é uma peça fácil, mas uma peça para ser vivida e absorvida. Às vezes é desconfortável se encarar, seu reflexo em alguns momentos pode ser o que você não gosta de ver. Nunca teve a curiosidade, enquanto dormia, de tirar meus óculos e espiar meus olhos?
Conheci um louco que pensava que o fim do mundo tinha chegado. Ele pintava. Eu gostava muito dele. Ia vê-lo no hospício. Eu o tomava pela mão e o arrastava até a janela. Olhe! Ali! O trigo começa a brotar! E ali! Olhe! As velas dos pesqueiros! Como é bonito! (Pausa) Ele me fazia soltar sua mão, bruscamente, e voltava para o seu canto. Apavorado. Tinha visto apenas cinzas. (Pausa). Apenas ele tinha sido poupado. (Pausa) Esquecido. (Pausa) Parece que o caso não é … não era… tão… tão raro.
Era Beckett.
Fotos: Divulgação.
Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)
Que maravilha de crítica e, mais ainda, de peça! Deu vontade de assistir, tomara que venha logo pra SP.
ResponderExcluirObrigado!
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