domingo, 2 de novembro de 2025

Invisível, com João Côrtes -Teatro Brasília Shopping

    Antes havia vida, colorida, brilho. Havia afeto, paixão, amor, sexo. A vontade de viver plenamente pode, aos poucos, se transformar em auto anulação,  em um desaparecimento contínuo. Um jogo, uma jaula; o que protegia e preenchia se torna algoz.  O desenho do fim, descolorir-se. Em cena, o gaslighting, a asfixia psicológica que corrói a própria identidade. 

    João Côrtes se joga no abismo, ocupando o palco com energia e sutileza; e quanto mais se ilumina e brilha, mais fica invisível. O trabalho de ator surpreende, pelo grau de dificuldade de atuar, contracenando com sons e luzes, enquanto interpreta personagens antagônicos na mesma cena. Um ágil duelo de uma homem só, presa e predador. Um trabalho corajoso que requer técnica e condicionamento apurados.

    A dramaturgia de Moisés Bittencourt disseca a anatomia de um relacionamento abusivo, personificado na relação entre Eduardo e seu namorado, Michel; fazendo do público testemunha de quem já não encontra seu reflexo no olhar do outro, e sim apenas dúvida da  própria existência. A iluminação contracena com a trilha sonora, sincronizadas e bem executadas, criando a sensação de imersão, fazendo se perceber a habilidade do ator e dos respectivos profissionais cênicos e o cuidado da direção de Fernando Gomes e da diretora de movimento Ana Magdalena. 

    Invisível é um espetáculo frenético e de necessário incômodo, sem fácil redenção e sem aplauso que alivie a angústia. Nos perguntamos quantos vezes já nos invibilizamos, já invibilizamos alguém ou vimos espectros vagando por aí. Um grito sufocado de alerta para olharmos com mais atenção, não apenas para o vazio, mas para as relações que o alimentam.


    Instagram da peça

    Fotos: divulgação

    Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Agenda Cultural de Outubro/2025 - Brasília

O Arco-íris no Concreto
Teatro Silvio Barbato - Sesc SCS
03 a 05/10/2025




Teatro Sesc Paulo Gracindo (Gama)
03 a 05/10/2025






FrICÇÕES
Teatro Royal Tulip
02 a 05/10/2025
Crítica



Jung Laing, eu prisioneiro de mim
Instituto Invenção Brasileira - 
Taguatinga Sul
03 a 05/10/2025




Na Cama Com Veríssimo
Teatro Paulo Autran - SESC Taguatinga
04 e 05/10/2025



Uma Aventura Congelante
 Escola Parque 308 Sul
04 e 05/10/2025




Teatro Mapati
03 e 04/10/2025



03 e 04/10/2025




CAIXA Cultural Brasília
09/10 a 08/11/2025




Entre Trópicos
Teatro Newton Rossi - Ceilândia
09/10/2025



Desabafo do Bicho
Complexo Cultural de Planaltina 11 a 12/10/2025
Sesc Newton Rossi - Ceilândia 14 a 16/10/2025



As Rivais
Casa da Cultura do Núcleo Bandeirante
Diversas datas




Três Mulheres Altas
Teatro UNIP - 913 Sul
11 e 12/10/2025




Chapeuzinho Esfarrapado
Teatro Silvio Barbato - Sesc SCS
12/10/2025



Teatro Unip
17 a 19/10/2025




Invisível
Teatro Brasília Shopping
17 a 19/10/2025




Caixa Cultural
17 a 19/10/2025




Memória Matriz
Teatro Newton Rossi – SESC (Ceilândia) - 17 e 18/10/2025 
Teatro Yara Amaral – SESI (Taguatinga) - 29 e 30/10/2025 
Teatro Paulo Gracindo – SESC (Gama) - 31/10 e 1°/11/2025


CAIXA Cultural Brasília
24/10 a 02/11/2025





25 e 26/10/2025




31/10 a 1°/11/2025



ATENÇÃO!!!

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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O Bem-Amado, com Diogo Vilela e Grande Elenco

    Odorico Paraguaçu vive. Periculosamente vivo. A farsa engraçada e divertida escrita por Dias Gomes em 1962, apresentada aqui na íntegra, com cada preciosismo verborrágico de seu protagonista em seus neologismos e arcaísmos, soa como uma lupa do nosso eterno picadeiro político temperada; uma estranha sensação de reconhecimento para todos e certa nostalgia para alguns. Uma peça que tem mais de 60 anos pratrasmente e continua atual, agoramente, um clássico da nossa dramaturgia, apresentado como novela e em diversas montagens teatrais.

    Estamos diante da saga do prefeito que, eleito sob a promessa de construir o cemitério local, precisa desesperadamente de um defunto para inaugurar sua grande obra, acabando de vez com defuntice compulsória. E nessa busca macabra revelam-se as engrenagens do poder: a  demagogia, a hipocrisia e o oportunismo.  Apesar de distantes no tempo e espaço, há um paralelo perceptível entre o texto de Dias Gomes e o Teatro Russo, mormentemente  de Gogol e Tchekhov: a crítica social que satiriza a corrupção e a burocracia; o retrato de uma sociedade provinciana usado para refletir questões sociais e humanas mais amplas; a hipocrisia das classes mais abastadas, que precisam  manter as falsas promessas e aparências. 


    O elenco jenipapista estrelado vive em cena a alma de Sucupira com muito entusiasmo e força. Como nosso prefeito, Diogo Vilela, com uma presença de palco que magnetiza: o peito estufado, a mão que abençoa e apunhala e a voz que transforma a mentira em poesia cívica; Não-obstantemente, um ator que sempre teve o Teatro como o pilar principal do seu ofício e um protagonista deverasmente generoso com os colegas, sendo nítida a sua energia e dinamismo em cena, bem como seu tempo para o drama e para a comédia. 


    Orbitando Odorico, as Irmãs Cajazeiras, interpretadas por atrizes com carreiras sólidas no Teatro (Cris Mayrink, Rose Abdallah e Renata Castro Barbosa), a trindade das beatas, com seus desejos quase reprimidos, fofocas venenosas, afagos e influência no jogo do poder; Dirceu Borboleta, interpretado desconstrangidamente por Tadeu Melo com um lirismo desajustado, o secretário gago, cujo amor paradoxal serve de escada para o absurdo; o lendário Zeca Diabo, interpretado por Chris Penna que busca o equilíbrio entre a brutalidade e a ingenuidade do matador; o coveiro Chico Moleza, estrelado pelo hilário Ataíde Arcoverde, ator que ecoa na nossa memória, a personificação da espera, o funcionário público de uma obra inútil,  cujo lamento é o contraponto hilário ao otimismo delirante de Odorico. Completando a cena, o experiente Luiz Furlanetto (tio das Irmãs Cajazeiras, Hilário Cajazeiras);  Gabriel Albuquerque (Neco Pedreira, dono da Trombeta, o jornal da cidade, o marronzista) ; Lucas Figueiredo (Ernesto) Alê Negão (Demerval); Ezequiel Vasconcelos (Mestre Ambrósio); Rollo (Zelão) ; e Marco Áureo (Vigário). 


    O espetáculo é conduzido pela direção segura e certeira de Marcus Alvisi, que aproveita do texto na íntegra para extrair ao máximo o trabalho de ator e manter uma equipe coesa e que está feliz em estar no palco, o que é perceptível em cena. A parte técnica é muito competente, sem deceptude : A iluminação de Daniela Sanchez cria auras de santidade não tão santas e recorta na penumbra os conchavos, conduzindo nosso olhar; a direção cuidadosa de movimento de Juliana Medella acrescenta à obra  dinamismo; o cenário (Ronald Teixeira e Pedro Stamford) é grandioso e funcional, mostrando Sucupira em diversos elementos, que vão do mangue ao gabinete da Prefeitura, marcados pelo ótimo trabalho de visagismo (Mona Magalhães); e o figurino (também de Ronald Teixeira e Pedro Stamford) veste com esmero, em mínimos detalhes. 


    E, ademaismente, quando o destino se cumpre de forma épica e funestamente irônica, se registra o testamento de um Brasil que se devora. Um nome para sempre gravado nos anais e menstruais da história de Sucupira. O Grande, o Pacificador, o Desbravador, o Honesto, o Bravo, o Leal, o Magnífico, o Bem-Amado! E nos considerandos, sem-vergonhismo, um público bestificado com a sagração do herói!


    Instagram da peça

    Fotos: divulgação

    Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)


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sábado, 27 de setembro de 2025

O Arco-íris no Concreto, de Sérgio Maggio

    Conic. Década de 70. Capital Federal. Cidade cinza. Chumbo. Em um subsolo um feixe de luz encandeia o Poder. Um Portal. Um respiro colorido costurado com paetês e temperado com purpurina. Corpos e mentes livres, sendo naturalmente o que querem ser. Trabalho e resistência, onde toda uma comunidade vivia seu sonho, na icônica boate New Aquarius, primeira boate LGBTQIA+  de Brasília, quando o termo sequer existia e os direitos era negados.

    Sérgio Maggio escava a memória de Brasília para nos apresentar sua alma subterrânea tendo como pano de fundo o encerramento das atividades do local e a busca de Martina, filha de dois frequentadores. Um belo trabalho de pesquisa que além de histórias é uma colcha de afetos e proteção, em uma rica dramaturgia baseada a intimidade de quem viveu aquelas noites; um mosaico de memórias com recortes visuais e sonoros. Um trabalho denso que abre espaço ao lúdico e à comédia, fazendo que a peça transcorra sem que se perceba que o tempo passe, ao mesmo tempo que diverte e emociona.

    A direção de Sérgio Maggio é ousada, afetiva e técnica, aplicando conceitos do audiovisual ao palco, tratando a memória como se estivesse sendo editada ao vivo. Surgem flashbacks com sutis diferenças de perspectiva, com novos detalhes. O afeto da direção transborda no comprometimento do elenco composto por atores-criadores, presentes em várias camadas de suas interpretações, os três muito fortes e inteiros em cena.

    Hugo Leonardo é pura potência como Mona Mone de Liz Taylor, uma entidade cênica que homenageia as lendárias Francis Taylor e Laura di Vision, representando as que vieram antes e abriram os caminhos. Em contraponto, Pedro Olivo, que também assina a maquiagem, traz a jovialidade e a feminilidade de Luna, encarnando com uma leveza que encanta e desafia o inevitável conflito de gerações de drags. Adentrando esse universo, a versatilidade de Maria Leo Araruna interpretando a jornalista Martina e a “sapatão” Help. O processo criativo se revela em sua mais bela forma na fusão do pessoal com a ficção, um momento em que depoimentos e dramaturgia se misturam e nos capturam, especialmente quando a peça tem a coragem de dar voz à "criança viada", à memória de uma identidade que floresce na infância, muitas vezes em silêncio e solidão. Interessante também o debate sobre etarismo na cena  LGBTQIA+ e os conflitos geracionais.

    A montagem é uma imersão. Os figurinos e o cenário, assinados por Jones Schneider colorem o que a cidade oficial insiste em negar; a iluminação pulsa, recortando as cenas e a trilha sonora é uma máquina do tempo, cada canção celebra a memória de uma geração que, literalmente, dançava para sobreviver. Arco-íris no Concreto é uma peça divertida, que nos faz rir, se emocionar e refletir, um grito colorido cheio de boas energias que ecoa para nos lembrar e mostrar que a memória de uma comunidade também se define pelo brilho e pela festa, armas de luta e resistência. 


    Por fim, recomendo o documentário "Um Salto Alto - A História da Arte Transformista do Distrito Federal", de LuShonda, que aborda e homenageia o Templo que inspira a peça e, principalmente, as pessoas que desbravaram os tempos de chumbo, trazendo luz.

 O arco-íris sempre vai romper o concreto, furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, parafraseando Drummond


Fotos: divulgação


terça-feira, 23 de setembro de 2025

A Baleia – Teatro Unip

    Um oceano de dor. O retrato de um naufrágio. O sufocamento de Charlie, um homem que, ancorado em seu sofá pela culpa e pelo luto, busca um último e desesperado ato de redenção: a reconexão com a filha.

    A peça, originada da escrita visceral do dramaturgo americano Samuel D. Hunter, é um mergulho. Hunter, que partiu de experiências pessoais com o isolamento e a homofobia; ele não escreveu uma peça sobre obesidade, mas sobre a busca por honestidade, sobre a beleza que pode ser encontrada nos lugares mais inesperados e, principalmente, sobre a última chance de um homem se fazer entender antes que o mar o engula por completo.

    Preso a um corpo de quase 300 quilos, José de Abreu nos entrega uma grande atuação. Sua energia cênica não está no movimento, mas na imobilidade gritante; nos olhos, na respiração ofegante, na voz que tenta ensinar a verdade a seus alunos enquanto esconde a sua própria. A performance que transcende a maquiagem e o enchimento; o que vemos ali é a dor de Charlie, viva, pulsando em cada palavra, que nos ferem a alma.

    Sua filha Ellie (Gabriela Freire) é o contraponto brutal à imobilidade do pai. Sua raiva é um espinho, um desprezo que esconde uma imensa vulnerabilidade, despertando emoções pesadas na plateia. O embate entre os dois é o coração pulsante da peça. Mas o mini universo de Charlie não se resume a esse duelo: há o cuidado sufocante de sua amiga enfermeira (Luisa Thiré), a fé ingênua do jovem missionário (Eduardo Speroni) que busca uma alma para salvar e o passado mal resolvido com sua ex-mulher (Alice Borges). Espelhos que refletem as múltiplas facetas da vida de Charlie.

   
    A direção de Gabriel Fontes Paiva é sensível, mapeando a alma de Charlie com um cuidado que transforma o palco em um microcosmo de emoções. A montagem nos aprisiona junto ao protagonista, e essa imersão é um de seus maiores trunfos. O cenário de Bia Junqueira não é apenas um apartamento; é um personagem, um cárcere que testemunha a desintegração e a busca por graça. Cada elemento técnico, da iluminação de Maneco Quinderé, que esculpe a solidão, à trilha sonora de Federico Puppi, que se mistura silêncio, contribui para a construção de uma atmosfera muito densa.  


    Por fim, em um último suspiro, o leviatã se ergue. Aquele corpo, que era prisão, se torna, por um instante, um monumento à força do espírito humano. Um momento sublime. A cortina cai, mas a imagem permanece por muito tempo em quem mergulhou no espetáculo.


  Todos os corpos humanos sempre guardam uma alma disposta a voar.


    Fotos: divulgação

    Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)