Os atores como objetos na entrada e um cenário que é uma instalação artística, uma peça que se inicia antes do terceiro sinal. O público senta. Nastácia corre. Mulher objeto. E lá estamos, no jantar preparado por Nastácia (Flávia Pyramo), o enigma em forma de mulher. A beleza como chaga. Olhar de cortesã. Olhar de quem já sofreu tudo que poderia ter sofrido nessa vida. Ela nos encara.
A partir daí temos duas possibilidades de se assistir a peça: a partir da obra de Dostoiévski ou a partir de uma inspiração recortada das páginas de O Idiota, sem qualquer pretensão de ser uma adaptação, mas a utilização de uma grande personagem para um manifesto contra a violência contra a mulher. Apesar de não serem possibilidades que se anulam, a primeira se definha pela opção da dramaturgia em retirar o horror e a brutalidade do clássico, ao tangenciar a comédia e a caricatura das personagens, a escolher praticamente retirar de cena o humanista e epiléptico príncipe Míchkin e, principalmente, ao buscar redenção no trágico. Fica a provocação, a essência crua do livro não teria mais impacto que o manifesto?
A segunda possibilidade é desafiadora: arrancar das páginas de "O Idiota", uma complexa personagem feminina e dar-lhe o protagonismo. Estamos em sua festa, na noite fatídica em que seu destino será decidido por homens: Totski (Chico Pelúcio), o oligarca que a tomou como concubina na adolescência, agora a oferece em casamento a Gánia (Lenine Martins), como quem descarta um objeto. Presenciamos uma mulher que apesar de sofrer todos os tipos de violência, abusos e humilhações, se recusa ao papel de vítima, buscando ecoar sua voz e não aceitar a opressão, sendo ainda dominante, altiva e sedutora. A peça é uma clara e necessária denúncia contra o machismo, a misoginia e o feminicídio.
Em relação a parte técnica, na apresentação teve um problema no vídeo, que incomodou, retirando da cena um componente importante, que é a videoarte que revela vídeos e nomes de vítimas. Outras questão foi a iluminação, que apesar de momentos de muita qualidade artística, quando um personagem se olha no reflexo da água, peca em pequenos atrasos e também não se potencializa na cena da lareira.
Algo que se percebe, também, é que a peça funciona mais em um local intimista, no qual o público esteja ao redor do palco, do que em teatros tradicionais com palco italiano e plateia; a ideia é de que o espetáculo foi feito para ser potencializado naquele tipo de ambiente, com o público dentro da festa de Nastácia.
Também é perceptível que os atores estão presentes de corpo e alma no projeto, cada um se doando ao máximo em cada cena.
No mais, a peça idealizada por Flávia Pyramo vem sendo aclamada e na qual é recorrente ver relatos de espectadores emocionados refletindo a condição feminina neste mundo, demonstrando que o Teatro é sempre válido e importante, ainda que o caminho escolhido pela montagem não seja o abismo de Dostoiévski.
Fotos: divulgação
Vídeo sobre Nastácia no Festival de Avignon (França)
Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)