domingo, 20 de outubro de 2019

1/4 de Cena – Festival de Cenas Curtas – 2ª edição – Sesc Garagem – DF


O Festival de cenas curtas ¼ de cena é uma importante mostra competitiva que visa estimular e incentivar a produção de trabalhos independentes. Dois anos após a primeira edição, o festival recebeu a inscrição de 48 trabalhos e selecionou 12 cenas, com linguagens variadas, teatro, dança, performance e circo, que são apresentadas em 15 minutos, 4 por noite. Após as apresentações é aberto o debate ao público.  


Nestes tempos estranhos que vivemos, coube perfeitamente a utilização da pedra como símbolo do festival, que recebe uma exposição do artista plástico convidado Lourenço de Bem.  A pedra é resistência que forma com outras pedras um rochedo intransponível. Este ícone remete ainda à mitologia grega, na figura de Sísifo, condenado por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha e ao atingir o topo, ver a pedra rolar novamente montanha abaixo até o ponto de partida, como os profissionais da arte, que lutam, se empenham, nunca desistem, mas muitas vezes sentem o peso de ter que repetir, fracassar, repetir, fracassar...em uma luta eterna.



Fui ao terceiro dia do festival, no sábado e assisti três cenas: Hábraços, Manifesto Trev(Eco)-Ciborgue e Fracasso Coreográfico, além do curta O Pequeno Chupa-Dedo, cuja cena venceu a 1ª edição da mostra.


Hábraços é uma cena do grupo Pés, Teatro-Dança com pessoas com e sem deficiência, apresentada por Mari Lotti e Roges Moraes. Ele cadeirante. Dois dançarinos. Que nos fazem enxergar somente a arte, independente da condição física. Com almas leves, corpos poéticos, que se completam em cena, em uma dança perfeita, mostrando a dicotomia entre o afeto e o desafeto, o encontro e o desencontro. As trocas entre o par, que encerram de forma comovente e bela, mostrando que sempre fica algo de um no outro, inclusive entre os artistas e a plateia. 









Maria Léo Araruna apresentou a cena Manifesto Trev(Eco)-Ciborgue. Baseada em uma pesquisa sobre os textos Medéia, de Eurípedes e Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway (http://ea.fflch.usp.br/obra/manifesto-ciborgue), a cena faz uma analogia fantástica entre a condição trans e o mito da criatura ciborgueana, um ser entre o orgânico e a tecnologia. Interessante a abordagem da questão da artificialidade dos nossos corpos, baseada na classificação em gêneros que se trata de nada mais que uma construção secular. Quem dita a norma? Quem faz as regras? Quem classifica? Quem determina o que é natural ou não? Por que um corpo cis é correto e um corpo trans não é? Essas diferenças não seriam a base da violência transfóbica? De vidas desnecessariamente perdidas, desperdiçadas. Que o eco do traveco ecoe. Que o respeito a pluralidade e a diversidade não sejam artificiais.







A cena Fracasso Coreográfico, do grupo Coletivo Tempos, foi apresentada por Rafael Alves. Uma dança rumo ao abismo e ao fracasso. Mas um fracasso como potência, construtivo, um aprendizado. Uma cena de incertezas no qual a queda é utilizada como mola propulsora, para levantar, tentar, cair, levantar, tentar, cair. Se jogar. De cabeça, de frente, de costas, de um lugar bem alto. Ficar em pé, por mais que isso seja impossível por muito tempo, mas sempre tentar, buscar. Mesmo que o tempo seja curto. Que ele voe. Que se esgote. Que deixe de ser tempo. Sobretudo tentar.








Após a apresentação do curta metragem, sucedeu um riquíssimo debate entre os artistas, o júri e o público sobre as cenas apresentadas e sobre a questão de resistência mais que necessária nos dias atuais, além de ideias para a busca de trazer público ao teatro.


Parabéns aos idealizadores, artistas, técnicos, colaboradores, patrocinadores e público. Foi uma noite linda, que nos dá esperança para continuar a carregar nossas pedras.


Um brinde a representatividade do festival, bem demonstrada na cena Hábraços que deixa claro que a arte é para todos e não para alguns, conforme bem disse Roges Moraes;  na cena Manifesto Trav(eco) Ciborgue que dá voz e visibilidade a mulher trans; e na cena Fracasso Coreográfico apresentada por um artista negro da periferia.

Viva a Arte!!! Ela sempre vai vencer!!!

Júri oficial: Ana Flávia Garcia, Jonathan Andrade e Larissa Mauro.

Agradecimento: Janaína Mello (@ninjalokaproducao).

Fotos: Humberto Araújo (@humbertoaraujo).



sábado, 19 de outubro de 2019

The Letter – Paolo Nani (Itália/Dinamarca) – Caixa Cultural – DF



Um ator. Uma mesa. Uma cadeira. Uma garrafa de vinho. Uma caneta sem tinta. Um papel. Um envelope. A intenção de beber e de escrever uma carta. O suficiente para o grande clown italiano Paolo Nani desenvolver quinze variações da mesma cena.


O premiado espetáculo, estreado em 1992, passou por quase 40 países, se transformando em um cult do teatro gestual. A experimentação cênica baseada no livro Exercício de Estilo do poeta e escritor francês Raymond Queneau é conduzida com maestria pelo bufão.




A expressão corporal e facial de Paolo Nani não deixam dúvidas de que é um artista completo, uma aula cênica. Seu carisma e simpatia o fazem controlar de forma hipnótica o público, que participa ativamente das cenas e não para de rir nem de se divertir durante toda a performance. O que ocorre de forma progressiva, até que toda a plateia esteja completamente envolvida em uma catarse coletiva. Não há um momento monótono sequer. A identificação do público é imediata, é o humano transcendendo a forma de clown. Algo que cada um de nós tem guardado dentro de si, um espelho.





Destaque para as homenagens ao cinema mudo, à arte circense, aos filmes de faroeste e de terror, além da insólita cena realizada sem as mãos.





Paolo Nani é um virtuose, um mago da técnica teatral, que faz algo extremamente difícil e árduo do ponto de vista físico e artístico parecer algo simples e orgânico. Coisa de gênio, que quando precisa improvisar, o faz de forma natural.  




Um trabalho imperdível com a assinatura de um grande mestre!



Agradecimento: Jaqueline Dias (Tato Comunicações).

Fotos: Nityama Macrini, exceto cartaz (divulgação).

sábado, 12 de outubro de 2019

Esperando Zumbi – Cristiane Sobral – Teatro SESC Garagem – DF



Sala de espera de um dos maiores palcos da resistência da arte em Brasília. O público não para de chegar. A diversidade e a pluralidade estampada nos rostos e nas roupas, sem rótulos, sem barreiras. Simplesmente pessoas, ávidas para esperar por Zumbi.



Peço licença ao adentrar.

A montagem conta a história de uma mulher negra que espera por seu homem, um negro alto, forte e bonito. Zumbi. Vocês vão ver quando Zumbi chegar.



Escrita, dirigida e interpretada por Cristiane Sobral, “Esperando Zumbi” é uma peça-manifesto que possui fortes críticas sociais, com recortes da atualidade, que nos fazem lembrar e relembrar quantas vezes forem necessárias da eterna luta contra o colonialismo, o preconceito, o machismo, a cultura do estupro, a intolerância religiosa, a perseguição política, o genocídio do povo negro, a desigualdade social, o ataque às minorias e todas as questões urgentes, apesar de permanentes, que não são resolvidas, porque nosso país adota oficialmente o esquecimento e a manipulação da nossa História.



Impossível não se impressionar com a presença de palco de Cristiane Sobral, representando a força da mulher negra com garra e talento. Seu trabalho corporal e postura ao interpretar tanto a protagonista quanto os guias (Dona Maria Navalha, Seu Arranca Toco e Zé Pilintra) são marcantes.



A quebra constante da quarta parede e a interatividade com o público deixam o espetáculo ainda mais vivo e tocante. São constantes os momentos de emoção tanto da plateia quanto da artista, movendo a energia do teatro para cima, sempre de forma positiva, mesmo tratando de situações difíceis. De arrepiar e marejar os olhos. Como é importante ver a cultura afro-brasileira sendo representada em posição de destaque. Uma cultura que merece ser celebrada, preservada, defendida e respeitada, sempre.



A banda de apoio, composta por Ana Béa, Dani Vieira e Marcelo Café, apresenta uma trilha sonora genuína e contagiante interpretada por vozes lindas e harmônicas, dando o ritmo e a sonoridade ao espetáculo, trazendo o terreiro e o mundo dos orixás e guias ao teatro. Parafraseando Marcelo Café, uma maravilhosidade.



Não tenhamos medo nem receio, estamos juntos esperando Zumbi chegar. E dessa vez, não vamos deixar de jeito nenhum os homens de bem matá-lo! Vai ter luta! Por que, seja Ogum, Oxum, Oxóssi, Oxumaré ou outro; quem tem um orixá, tem tudo!




Salve Zumbi!

Destaque para os prêmios e seleção em festivais, além da publicação na Antologia de Dramaturgia Negra (FUNARTE). http://www.funarte.gov.br/artes-integradas/funarte-lanca-livro-com-textos-de-autores-teatrais-negros/.

Viva a representatividade! Axé!

Ficha técnica:
Atriz, diretora e dramaturga: Cristiane Sobral 
Músicos: Ana Béa, Dani Vieira e Marcelo Café 
Fotos de divulgação: Victor Martiz
Fotos do espetáculo: Raíssa Tuany
Maquiagem: Paulo
Assessoria de Imprensa: Davi Mello
Iluminação: Larissa Souza;
Designer e Assistente de Produção: Ricardo Caldeira






sábado, 5 de outubro de 2019

Deixe a luz da varanda acesa – Ocupação Espaço Cena – DF



“Deixe a luz da varanda acesa” é uma peça lírica, uma poesia encenada em cima de memórias, lembranças e laços familiares. Escrita por Áurea Liz, lembra a visita a uma velha amiga, com quem temos tanto a conversar após longa ausência. É um tema universal. Cada um de nós tem essas lembranças guardadas e essa nostalgia.

Entramos pelo quintal da casa, em meio a um varal repleto de colchas e roupas, até chegarmos a uma casa simples e aconchegante, com um cenário que lembra um tempo que não volta mais. Nessa viagem ao passado, repleta de objetos de nossas infâncias, o clima intimista dá o tom do espetáculo. Estamos ali, presenciando o reencontro de Verônica (Lilian França) com a sua madrasta Rita (Áurea Liz), companheira de sua mãe.


Por não suportar o peso do preconceito de ser filha de uma mulher que é feliz vivendo uma relação homoafetiva, Verônica sai de casa. Muitos anos depois, voltando de outro país, onde buscou a felicidade, lutou por seus sonhos e conseguiu se formar, está ali de surpresa, de repente, para rever Rita e sentir o cheiro da terra e demais aromas peculiares daquela casa, que também chegam ao espectador. 


Em um clima conflituoso, porém gostoso e saudável, cheio de amor e carinho, estamos ali, pensando em como é bom ter aquela conversa, tomar café, comer bolo e comer aquele pão quentinho com quem gosta da gente e não vemos há muito tempo. Com todo o afeto e todos os conflitos são momentos que nos fazem refletir e repensar tudo que aconteceu, onde estamos e para onde vamos. A peça acerta na questão de nos levar em um passeio às nossas memórias.


Algumas passagens e soluções cênicas são bem interessantes: objetos de memórias, leitura de cartas inusitadas, fazer café, conversar na varanda e as diversas camadas de lembranças, que se completam com a trilha sonora.



Foi comovente observar a entrega das atrizes, que visivelmente se emocionam durante o espetáculo.

Importante destacar que a peça venceu os Prêmios de Melhor Espetáculo e Melhor Atriz no II Festival de Teatro de Bolso 2019 – DF.

Destaque também para a montagem da peça no CRAS de Ceilândia e no Lar dos velhinhos, fico imaginando a emoção que sentiram tanto o público como os artistas e a equipe técnica (http://www.tmmagazine.com.br/amp/espetaculo-deixe-luz-da-varanda-acesa-em-temporada-por-cras-do-df-e-no-canto-da-auge).

Em clima nostálgico, fiquei comovido ao saber que a consagrada atriz Verônica Moreno, falecida em 2015, interpretaria Rita e que a atriz/dramaturga Áurea Liz assumiu o papel para homenageá-la. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2019/06/14/interna_diversao_arte,763023/deixe-a-luz-da-varanda-acesa-brasilia.shtml



Não importa por onde andemos, por qual caminho percorremos, citando Chaplin: “Quando me for, levarei um pouco de ti e deixarei um pouco de mim”.  

Fotos: Diego Bressani, exceto da atriz Verônica Moreno (divulgação).