quinta-feira, 2 de maio de 2024

2 + 2 = 5 – Agrupação Teatral Amacaca – CCBB Brasília

   Em um futuro presente distópico, cá estamos, em Brasília ou em outra cidade qualquer, sendo observados pelo Grande Pai de Todos (GPT), pobres criaturas colaboradoras da Metabras, consumidor e mercadoria, manipulados em um mundo pós verdade. A verdade: uma mentira contada 1000 vezes. Soa familiar?


     Adaptação do clássico de 1984, de George Orwell,  2 + 2 = 5 é um espetáculo para sentir e refletir, no melhor estilo da Agrupação Amacaca, com música autoral, coreografias, texto bem trabalhado e atores apaixonados, defendendo no palco o que acreditam, um teatro que traz o pensar de forma muito séria, mas ao mesmo tempo muito divertida. 


    Dogmas, aceitação, acreditar no que oferecem, em nome de seguir, de sobreviver, quem enfrenta sofre, muitas vezes de forma solitária, a sensação de estar sozinho nesse mundo coletivo é cada vez maior, mesmo assim tudo segue seu rumo em prol das bigdatas, das grandes corporações, do grande capital. Quem comanda esse monstro sem cérebro. O autoritarismo tem outro rosto, não parece mais tão cruel. 



    2 + 2 = 5, deus é poder, 1984 é 2024, 1949 também. A parte musical e criativa do grupo é muito interessante, simulando realidades que as máquinas fazem, com muito mais graça e maestria, uma boa vingança, fazendo 2 + 2 ser igual a 4, deus apenas existir para quem acredita e 2024 ser 2024. Tem hora que precisamos ao menos tentar retomar o controle das nossas vidas ou aceitarmos os destinos que o GPT escolher.

    O Diretor convidado Felipe Vidal consegue manter a unidade da ATA e as bases que a fizeram chegar onde chegou, contribuindo para o viés investigativo da obra e adaptação de forma muito sólida, além de aflorar os elementos do grupo: como garra, talento, irreverência, ironia, troca com o público, música, independente dos que estão em cena, todos trabalham em prol da peça, se constituindo em uma trupe que terá vida longa e é um patrimônio do Teatro de Brasília, honrando o eterno e inesquecível Hugo Rodas, cuja presença está sempre no palco do ATA.


    Ingressos e Ficha técnica 

    Fotos: Divulgação.


quarta-feira, 10 de abril de 2024

Prisioneiro 12.207 – de Bruno Estrela – Teatro dos Bancários/Brasília/DF

    A memória revisitada para não ser repetida. Sente-se o choque. A dor em cena. A desumanização. A memória sentida para não ser esquecida. Luz no chumbo. Não pouparam nem o som do vinil. Não pouparam nem o vendedor de discos. Um homem preso em uma cela do DOI-CODI. Na mão de assassinos. A sofrer e sonhar, imerso em alucinações, mas sem jamais perder a capacidade de suavizar sua dura vida nos porões de uma covarde ditadura. 


    Inspirada em pesquisa sobre a Comissão da Verdade, a peça é uma homenagem aos que não se calaram e um alerta para os que aqui estão. Ato desprezível, a tortura. Institucionalizada. Uma mancha a envergonhar para sempre. Uma história que aconteceu ontem e não pode ser jamais naturalizada ou relativizada. Sem anistia.



    Bruno Estrela tem uma atuação marcante na pele de Alex, cujo crime era vender discos de vinil. O ator se joga de forma visceral em sua própria dramaturgia, inteiro em cena. O trabalho corporal é intenso e exaustivo, nota-se que há uma grande preparação. Se consegue ver o ardor e as marcas da personagem, em uma performance memorável. Sangue, suor e lágrimas, sem perder a ternura. Em cada cena envolve o espectador em sua cela, fazendo ser parte de toda aquela injusta e cruel solidão.


    Nem só de doer vivemos, mesmo em um cubículo imundo ou convivendo com covardes torturadores, menores que os ratos que são instrumento de tortura e companhia, temos a possibilidade de receber visita como a de Martina (Silvia Viana), o contraponto, o amor e ódio, a chance de ver o mundo lá fora, a esperança quando tudo já se perdeu, a vida que se passou e volta. Uma mulher que também sofreu os horrores. Um ser etéreo, lembrando personagens do Bardo. Uma atuação marcada pelo olhar desafiador e o jogo de palavras. 


    Apesar da dor, o lúdico também está em cena; Alex não se resume ao que seus torturadores querem. Ele é maior que eles. Ele ainda é humano, muito mais do que os que o desumanizaram. As cores dele brilham mais que qualquer tiro de fuzil; e a iluminação pinta esse quadro com bastante realce e contraste. A cenografia é interessante e funcional, permitindo o desenvolvimento de soluções cênicas, mesmo entre correntes, celas e cadafalso. A bela trilha sonora é cantada ao vivo por Gaivota Naves e Guilherme Cobelo traz a suavidade e a direção cuidadosa dá ritmo e camadas ao espetáculo, que surpreende em cada cena, um trabalho conjunto de André Amahro, Bruno Estrela e Silvia Viana.


    Que o grito do Prisioneiro 12.207 ecoe!  


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    Ficha técnica

    Instagram de Bruno Estrela

    Fotos: Cleiton do Carmo

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Trilogia Grande Sertão: Veredas – Riobaldo – Teatro Brasília Shopping

   

        Travessia de uma vida. Um mergulho no clássico de Guimarães Rosa. Frente a frente com Riobaldo: seus amores, paixões e afetos; ilusões, desilusões, feitos, pactos e avessos de sua existência. Um homem humano que abre sua vida a nós, ilustres desconhecidos, ávidos leitores a escutá-lo, ávidos ouvintes a ler tudo o que ele tem a dizer. E ele conta tudo que foi e viu.

        Profundo conhecedor da obra do escritor, Gilson de Barros nos conduz ao espetáculo flutuando apenas pela presença da palavra, transformando o livro em uma viagem cênica que forma na mente do leitor as paisagens e vivência do sertanejo; um trabalho que magnetiza desde o início, ao se despir o ator de si e se encher de Riobaldo, em uma notável transformação física, transmutando-se do olhar aos gestos e da forma de se expressar.

        Em estado de atenção, a plateia se entrega e acompanha a trajetória contada por Riobaldo: alguns aficionados pela obra, se inundam de sertão pela possibilidade de visualizar a leitura em cena; outros, com a chance de ter um contato maior com a obra do que já tiveram, multiplicam as possibilidades de acesso ao universo do autor; certamente, nenhum deles deixou de viver e vivenciar cada detalhe do que presenciaram.

 
    
     Indicada ao prêmio Shell de melhor ator e melhor dramaturgia, a peça, que inaugura a trilogia, foi concebida de forma independente por Gilson de Barros há cerca de 4 anos, colocando em perspectiva as relações afetivas do ex-jagunço, agora fazendeiro. De seu amigo Diadorim, o aprendizado, a ambiguidade e o seu maior afeto; da prostituta  Nhorinhá, a paixão carnal, ainda que tenham se deitado apenas uma noite, como nos conta; e da esposa Otacília, o porto seguro, o que entende ser sua redenção. Uma imensidão de pactos e escolhas, como a vida.


        A direção do Mestre Amir Haddad leva o espetáculo para dentro do livro, sendo sua ideia a forma de fazer o teatro como se livro fosse, um homem contando sua vida e nada mais, utilizando a técnica da interpretação narrativa, que foi levada ao extremo e apresentada com maestria pelo ator. A trilogia se completa com o “O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”, que trata da dialética do bem e do mal; e “O Julgamento de Zé Bebelo”, sobre justiça.

        Travessia de uma peça. Imaginei a peça circulando em povoados. A palavra povoando mentes, desbravando sertões, retornando à fonte de onde Guimarães Rosa colheu a matéria-prima para sua obra-prima. 


         

            Instagram da trilogia


            Ingressos:

            RIOBALDO

            Dia 06/04/2024 

            Dia 07/04/2024 


            O DIABO NA RUA NO MEIO DO REDEMUNHO

            Dia 12/04/2024 

            Dia 13/04/2024

            Dia 14/04/2024 


            Teatro Brasília Shopping

            Agradecimento: Renata Rezende

            Fotos: divulgação


quarta-feira, 3 de abril de 2024

As Crianças – Caixa Cultural Brasília

    

          Nosso quintal radioativo, ar de tragédia. A salvação pelos antigos. Redenção e reparação. Não se assuste, é uma peça sobre nós, aqueles que ou vão morrer ou envelhecer; sobre nós, os que herdaram e os que vão deixar heranças e legados, histórias e caos. Mas, não se assuste, é uma história sobre nós, moradores temporários desse lugar. Estar e não estar. Permanecer. Sumir. Se doar. Um passado que já não é. Um futuro que ninguém sabe que será.


        Reclusos em local distante, um casal de físicos nucleares aposentados recebe a visita de uma antiga amiga de trabalho, que os convida para algo inusitado: salvar as gerações que chegaram depois. Um triângulo escaleno que busca viver, se divertir e colocar suas questões em dia, antes do ato heroico. A vida vivida e não vivida que passa em cena, os destinos de nossa casa, as questões corriqueiras e urgentes que vão nos submergir.

         As Crianças é um espetáculo que cresce a medida que o tempo em cena transcorre, entre boas conversas, danças, brincadeiras, pequenos prazeres; e, a certa medida, não termina nos aplausos, mas nas reflexões que povoam a mente do espectador. Em cena, contemplamos a história viva do Teatro, no elenco composto por Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, atores premiados, que funcionam como engrenagens e nos mostra a força e o poder de transformação da Arte. Como não vidrar os olhos neles em cena e não resgatar memórias afetivas de personagens memoráveis da TV, como Irinéia de Tamanho Família.


        A opção do diretor Rodrigo Portella por uma montagem minimalista que projeta o cenário na mente do espectador, por meio da fala das rubricas, converge com as questões abordadas como consumo desenfreado e uso abusivo dos recursos naturais. Em cena, pouca cenografia, mas muita atuação e muita imaginação, se completando e formando a imagem em cada um. Um Teatro vivo, que salta em nossos olhos.

          Multipremiada, a montagem estreou em 2019, foi interrompida pela pandemia e voltou aos palcos para continuar ousando, mostrando que nunca abandonaremos nossas crianças enquanto a Arte pulsar. “Eu não sei querer menos.” Nem eles.


          Instagram da peça: As Crianças

          Fotos: divulgação

         Agradecimentos: Rodrigo Machado e Celso Lemos.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Fim de Partida – CCBB Brasília

    Revisitar Beckett é estar frente ao espelho, observando a nossa sina de uma fuga que nunca iremos alcançar. É experimentar o trágico da condição humana, rir de forma envergonhada, mas nunca tola; e sempre ter a esperança que algo vai mudar, ainda que em vão. Assim, atravessamos a peça na expectativa de uma descompressão que não vem.  A natureza nos esqueceu. 


    Nunca se engane com palhaços em cena; a nossa história, Fim de Partida, nunca será uma peça de humor, ainda que possamos rir de nós mesmo e ter momentos efêmeros de prazer. Rir da nossa forma de servir e sermos servidos, das nossas relações, dos jogos de poder que nos são impostos, ou que voluntariamente nos inserimos, e papéis que representamos. Eternas repetições. Não existe mais natureza. 



    Escrito em tempos de ruptura, o texto tem a atmosfera da desesperança da harmonia da convivência entre seres humanos. Vivendo em um buraco, um homem manipulador chamado Hamm, seu espólio (seus pais fantasmagóricos e sem pernas, Nagg e Nell, que vivem em latas de lixo) e Clov, o serviçal, o peão que pode se mover. Um jogo de xadrez em círculo. Um contínuo movimento para frente e para trás. O rei e o peão. Esta noite eu vi dentro do meu peito. Tinha uma imensa ferida.



    A montagem é ousada e consegue atingir em cheio os espectadores mais atentos. Sensacional a simbiose entre pai e filho (Francisco e  Victor Dornellas - Trupe Garnizé), interpretando Hamm e Clov, trazendo magia ao palco, misturando realidade e ficção. Afetos e conflitos. Um ator consagrado que supera tudo para estar em cena e seu filho, que com todo talento e grandiosidade, trilha seu próprio caminho nos palcos, sem esquecer do legado que carrega. O que você viu foi seu coração.


    A direção de Edi Ribeiro é precisa e respeita a condição do interprete de Hamm, extraindo o melhor para as cenas, para exaltar a vida e a obra de arte do autor. Nota para o bom trabalho de João Santos e Marina Viana. A trilha sonora complementa de forma orgânica o espetáculo. O cenário cercado de livros, remete ao conhecimento, a única coisa que resta quando não temos mais nada. Os tons pastéis, a palidez, de todo o conjunto de maquiagem, figurinos e adereços, dão a sensação da ausência. As janelas altas demais, o sol fraco demais, o mar perto mas longe demais; tudo converge para o pequeno universo hermeticamente isolado. É um fim de dia como os outros, não é, Clov?



    Beckett sempre surpreende! Uma viagem até o âmago do ser humano. Não é uma peça fácil, mas uma peça para ser vivida e absorvida. Às vezes é desconfortável se encarar, seu reflexo em alguns momentos pode ser o que você não gosta de ver. Nunca teve a curiosidade, enquanto dormia, de tirar meus óculos e espiar meus olhos?

    Conheci um louco que pensava que o fim do mundo tinha chegado. Ele pintava. Eu gostava muito dele. Ia vê-lo no hospício. Eu o tomava pela mão e o arrastava até a janela. Olhe! Ali! O trigo começa a brotar! E ali! Olhe! As velas dos pesqueiros! Como é bonito! (Pausa) Ele me fazia soltar sua mão, bruscamente, e voltava para o seu canto. Apavorado. Tinha visto apenas cinzas. (Pausa). Apenas ele tinha sido poupado. (Pausa) Esquecido. (Pausa) Parece que o caso não é … não era… tão… tão raro.     

    Era Beckett.



    Ingressos e Ficha técnica     

    Instagram da Trupe Garnizé

    Fotos: Divulgação.

    Agradecimento: Rodrigo Machado (Território Comunicação)