terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

O Veneno do Teatro – Osmar Prado e Maurício Machado – Teatro UNIP – Brasília/DF

    A morte de Sócrates, um jogo, a demonstração de poder absoluto, a luta entre classes, os questionamentos acerca das máscaras sociais e das convenções, a linha tênue entre a realidade e a ficção, a nossa crueldade exposta, explodindo na nossa cara. 

    Qual o limite para a nossa crueldade? 

    Até onde podemos chegar?     


    Escrita na redemocratização da Espanha, em 1974, após a Ditadura Franco; ambientada na Paris pré Revolução Francesa e encenada no Brasil inspirada na Paris da década de 1920, O Veneno do Teatro é atemporal e universal, mostrando que o teatro tem o poder de transcender e ser arte mais viva que possa existir. Ainda que muitas vezes, assim como a profissão de ator, tem o paradoxo de ser a mais desprezada das artes e a mais invejada e a mais executada, por ser a essência do ser humano atuar ao vivo e presencialmente.

    Um duelo entre um Marquês e um ator, um sádico aristocrata e um arrogante ator acuado, preso em seu jogo, prestes a ser a cobaia perfeita de seu teste. A brutalidade humana, a irracionalidade do poder absoluto contra alguém que tem acesso ao poder, mas jamais terá o poder, convidado a se apresentar nos melhores lugares ao mesmo tempo a se hospedar em um porão, a mais desprezada e a mais invejada das profissões.

    Diversas reflexões acerca de relações humanas e sociais, múltiplas vertentes e leituras, dependo do ponto de vista de cada um da plateia, que precisa estar atento do início ao fim, em uma peça de fôlego. Dentre as vertentes, o fascismo e o esmagamento da cultura, como presenciamos a pouco em nosso país; ou a eterna luta de classes, com o poder de vida e morte sobre os mais vulneráveis; além da verticalidade das relações e o poder absoluto e irrestrito. A peça cabe para cada espectador.

    A montagem traz a volta triunfal de um ícone aos palcos, Osmar Prado, um Homem de Teatro com 65 anos de profissão, que além da atuação, traz uma vontade, uma raça de atuar, uma felicidade de estar no palco nos impressiona, além de toda simplicidade ao receber o público. Um ator que trata a personagem como se deve ser, maturando-a a cada sessão, com muito cuidado, em minuciosos detalhes. Acompanhando o mestre, está o premiado e experiente ator Maurício Machado, que se doa por completo, brilhando em cena neste grande encontro, que terá uma longa temporada nos nossos palcos.

    A direção de Eduardo Figueiredo é prática e precisa, levando o público para onde o espetáculo precisa ir, com ritmo e soluções acertadas, complementada pela boa iluminação, que poderia ter investido um pouco mais em uma luz de época e menos na contemporânea. Já o cenário, é grandioso e traduz a tensão do jogo, prendendo o espectador em cena, aprisionando no porão do sádico marquês, fazendo com que se viva cada segundo e se preste atenção o tempo inteiro, para não perder nenhuma parte das peças que formam o xadrez que se encerra. A trilha sonora e sonoplastia é executada com o luxuoso auxílio de um violoncelo, de Matias Roque Fideles, que dá o tom dramático e de suspense ao espetáculo, arrepiando o espectador em seus solos.


Quando o pano cai, compreendemos ainda mais o tamanho dos Grandes Artistas, cujos olhos brilham ao expressar e defender a Arte!


Instagram da peça: clique aqui

Fotos: Divulgação

Agradecimentos: Rodrigo Machado (Território Comunicação) e André Deca (Deca Produções

Premiação APCA (Associação Paulista dos Críticos de Artes) 2023 para Osmar Prado: assista aqui


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Macacos – Clayton Nascimento – Cena Contemporânea – CCBB Brasília


MA CA COS!!! MA CA COS!!! MA CA COS!!! 

    O eco de Clayton Nascimento, um gigante dos palcos e da vida, continua a reverberar, agora encerrando a 24ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, um dos festivais mais importantes do país. Espetáculo que começou como cena curta em 2016, que tive a honra de presenciar em 2019, passou 6 anos sendo gestada e lapidada até ganhar projeção nacional, lotar todos os teatros em vários Estados e receber os maiores prêmios das artes cênicas em 2023, como o Prêmio Shell de Teatro e o troféu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), algo inédito para uma monólogo de um artista negro, sendo o ator mais novo da história do Teatro Brasileiro a ganhar esses dois prêmios no mesmo ano; além diversos elogios como o de Fernanda Montenegro, que o chamou de fenômeno.


     Um ator em cena, sem figurino, sem cenário, um palco vazio que vai sendo preenchido por um corpo preto e periférico até tomar a plateia ao longo de quase 3 horas, transpassando o teatro e impactando para sempre a memória do espectador, por trazer tanta reflexão, nos contando a História do Brasil nosso país sob outro olhar, denunciando o genocídio do povo negro em uma nação que oficialmente faz a opção pelo esquecimento e pela busca de uma hipócrita e conveniente paz branca.

    Clayton Nascimento não é um só em cena, são incontáveis personagens; também não está só no palco, representa milhões de pessoas que tiveram direitos básicos negados ao longo do tempo, mostrando como tudo está interligado e o passado não resolvido tem graves  consequências nos dias atuais. Uma aula de História, de Vida, de Perseverança e de Arte. Um Teatro que expõe e compartilha o constrangimento do racismo e seus desdobramentos, rasura o cânone, revira o status quo, ocupa espaços de poder, encanta e alimenta o povo de conhecimento e coragem, uma Revolução, um acontecimento, a representatividade conquistada. 


        O espetáculo não deixa ninguém para trás, rememora pessoas fundamentais como Ruth de Souza, Léa Garcia, Elza Soares, Machado de Assis, Abdias do Nascimento, o Dragão do Mar e outros; além dos semeadores do artista, seus pais, que o apoiaram em todos os momentos, acreditando e pedindo para que ele perseverasse sem saber onde todos aqueles sonhos o levariam, e ele chegou, para ficar, não só por ele, mas pelas que vieram, pelos seus contemporâneos e pelos que virão.


        Tecnicamente, a peça mostra um impressionante trabalho de corpo e voz, são 3 horas em cena, sem falhas, sem buracos no palco, sem perder o foco ou o fôlego, um exercício cênico que transcende. Uma peça com múltiplas camadas, levando do riso à emoção, do contemplar ao choque, em curtos espaços de tempo. Não raro, ouve-se soluços na plateia; lágrimas, sal, o mesmo sal que dá nome a Companhia e foi leito de morte de milhões de pessoas em uma das maiores e mais longas diásporas da História mundial.


    Interessante a reflexão sobre o ensino do Teatro na faculdade se iniciar com os gregos, em que pese os africanos já terem Teatro muitos séculos antes. Traço um paralelo com o estudo do Direito, que também se inicia com os gregos; mais um de tantos apagamentos que se vivencia sem qualquer reflexão nas Universidades, um apagamento sistemático que nega o pensar de forma diversa. Outra reflexão interessante, a forma como os artistas pretos podem ser aplaudidos e aclamados em um palco e ao estarem anônimos em outros espaços serem discriminados. Como disse Eduardo Galeano: O mundo se divide entre indignos e indignados; o povo preto é protagonista dessa luta, mas todos nós somos responsáveis.



    Uma breve história pessoal sobre Macacos: é a terceira vez que assisto ao espetáculo, em um terceiro formato diferente. Assisti pela primeira vez em um festival nacional de cenas curtas, o Breves Cenas, em 2019, no qual foi eleita pelo público a melhor cena; depois, assisti on line, durante a pandemia, em 2020, com cerca de 2 horas, em um formato difícil que ainda mantinha toda a potência; e agora, encerrando a trilogia, a peça completa, uma obra-prima.


   Macacos precisa rodar o país, ser visto pelo maior número de pessoas, multiplicando a reflexão, o pensar, arrebatando pessoas por onde passar. É uma obra que vai além, caminha para ser declarada oficialmente Patrimônio Cultural. 

    Importante registrar que Macacos faz parte da rede de proteção de mães assassinadas por policiais, levando suas histórias e rostos pelo país, como a Senhora Terezinha Maria de Jesus, que desde 2015 luta por justiça por seu filho, Eduardo, uma criança de 10 anos de idade que brincava de carrinho no quintal de casas quando foi alvejado na cabeça por um tiro de fuzil. Os policiais foram absolvidos por legítima defesa e o processo foi recentemente desarquivado por conta da pressão gerada pela peça. 

    Obrigado, mais uma vez, ao Cena Contemporânea por existir e resistir nesta longa caminhada, trazendo e produzindo espetáculos sempre especiais e ótimas oficinas, formando plateia, contribuindo para colocar o Teatro no lugar de evidência que merece estar.



A Paz e a História não podem ser exclusivamente brancas.

Dedico o texto desta crítica ao povo preto brasileiro e ao povo palestino.



Um príncipe me contou que não existia racismo no Brasil

Eu contei para ele que não existia príncipe no Brasil

Não se muda a história negando fatos

Nem se mudam os fatos para contar a história

O racismo embora seja a história, não se resume ao passado

Está presente em cada brasileiro

Somos fruto de um racismo estrutural que permeia a sociedade

Se duvida, olhe em volta

Se continua a duvidar, abra o jornal ou veja a TV

Se ainda duvida, pesquise melhor sobre a sua própria história 

Rodrigo Ferret – 18/06/2020

                                         

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    Fotos: Humberto Araújo 


    Agradecimentos:

    Carmen Moretzsohn  

    Guilherme Reis 

    Sérgio Maggio 


    Outras críticas de peças do Teatro Negro:

    Cristiane Sobral

    Esperando Zumbi    

    Livro sobre Teatro Negro


    Leno Sacramento (BA)

    Nas Encruza 

    Livro Para Desgraça 


    Bruno Estrela (DF)

    Malandro Batuqueiro













quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cena Contemporânea – CCBB Brasília – 21 e 22/out/2023


        A 24ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 17 a 29 de outubro/2023 no CCBB Brasília, um dos festivais mais importantes do país, trouxe uma das principais Companhias de Teatro, a Cia Dos à Deux, que comemora seus 25 anos em grande estilo, com o espetáculo poema “Enquanto você voava, eu criava raízes”, que investiga o abismo em suas múltiplas vertentes e dimensões.



        Aqui estamos, em queda livre, para todas as direções, buscando tatear e entender essa experiência, sem saber se caímos ou voamos mais alto, construindo nosso sonho e nosso pesadelo, como crianças. O espetáculo que fala sem palavras, deixa a plateia também sem palavras, em uma troca constante, que se inicia na trilha sonora que se funde ao silêncio, que transpassa a sombra e a luz, usando como linguagem os corpos que são figurinos e estados, nada é absoluto, nada é estável, nada é óbvio.

        Toda essa viagem teatral e metafísica é realizada através de um Portal, que traz uma experiência única ao público, que tem a chance de criar sua própria história nessa obra aberta, de se jogar em seu próprio abismo de sensações, em seus vazios, criando raízes, voando, se despedindo algumas vezes da razão para poder mergulhar, encarar e escancarar o seu eu interior, tocando as feridas que podem ou não ter a chance de cura.


        A parte técnica é sempre tratada com primor: a trilha sonora e a sonoplastia são como moldura, a iluminação e a paleta de cores trazem elementos para compor a imaginação do público, o uso do audiovisual e muito do cinema trazido como elemento essencial, além do trabalho corporal e gestual que é uma marca muito forte da Cia, que tem uma assinatura própria, deixando registrada a Dos à Deux no Universo Teatral. 



        “Enquanto você voava, eu criava raízes” marca a busca de André Curti e Artur Luanda Ribeiro pela simbiose da dupla, que ao mesmo tempo que estão em locais diferentes em grande parte das cenas, estão, o tempo inteiro, conectados e buscando ser um só, um duplo. Marca também a coragem de fazer a Arte da forma que entende que deva ser feita, investigando, experimentando, nunca se repetindo, criando e montando mais uma obra memorável, uma ruptura na linearidade, se jogando em um abismo, tocando cada vez mais fundo suas raízes, para poder voar mais alto.



        Obrigado ao Cena Contemporânea por existir e resistir nesta longa caminhada, trazendo e produzindo espetáculos sempre especiais e ótimas oficinas, formando plateia, contribuindo para colocar o Teatro no lugar de evidência que merece estar.


Enquanto eles estão em cena, nós sonhamos!


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        Fotos: Humberto Araújo 


        Agradecimentos:

        Carmen Moretzsohn  

        Guilherme Reis 

        Sérgio Maggio 


       Crítica de 2019 sobre outro espetáculo da Cia Dos à Deux

 








domingo, 20 de agosto de 2023

O Último Tango – Santiago Serrano – CCBB Brasília

Duas solidões que se unem, um sonho. Antônio e Manuel. O tempo e a arte. Os risos e as lágrimas. A ficção e a realidade. O palco e a vida.  Os aplausos e a cortina que se fecha. A cortina que está prestes a se fechar e a saída que se abre. Existir e Resistir. A dualidade, síntese da trajetória humana ao som do Tango, a música que entra na alma e desperta sentimentos e emoções. 

        Um senhor octogenário que começa a apresentar lapsos frequentes de memória, viúvo e morando sozinho, sendo visitado por filhos que estão mais preocupados com a comodidade de cuidar do que com a felicidade e autonomia de quem entendem cuidar. Um homem de meia idade que anda com a sua mala que cabe tudo de material que lhe restou, um sobrevivente que não pode parar, um artista de rua. Um encontro que mudaria para sempre as duas vidas já cansadas e com poucas perspectivas.


O espetáculo discute temas importantes como o etarismo, a homofobia, o racismo, o racismo religioso, preconceitos em suas mais variadas vertentes, de uma forma profunda e ao mesmo tempo leve, com muita emoção, mas também com bom humor, flutuando pelas questões sociais e existenciais do nosso tempo. Uma poesia sobre o hoje, sobre ser, sobre todos nós, sobre a importância da solidariedade, sobre ser humano e o inevitável, envelhecer; mas principalmente sobre manter a chama da vida acesa e buscar caminhos.

Em relação ao etarismo, a peça é uma mensagem sobre a dor dos corpos idosos que  paulatinamente vão deixando de ser tocados, a viuvez como a orfandade da maturidade, a falta de autonomia, o distanciamento dos filhos e netos, entre outras agruras; mas também sobre as possibilidades de mudar o que parece estar definido e as mudanças de perspectivas, sobre viver o quanto nos restar, mas principalmente sobre o hoje e o que significa e a importância de estar vivo.


As soluções cênicas são interessantes, entre elas a possibilidade do público vivenciar os sonhos, que se mantém vivo; alguns recursos como a repetição de cenas foi muito bem aproveitado e executado, dando ideia permanência e rotina; os recursos audiovisuais mostraram um Tango Negro e Dança Afro Contemporânea, evidenciando ainda mais a diversidade da produção.

      O cenário é intimista e convida o espectador a adentrar junto com Manoel a casa de Antônio, o viúvo, apaixonado por sua mulher Elvira, portenha, amante do Tango, executado ao vivo, em uma trilha sonora com músicas de Carlos Gardel, Astor Piazzolla, Nelson Gonçalves e pontos de Umbanda, remetendo à origem negra do Tango.


A atuação de Chico Sant´anna é memorável, um mergulho na alma da personagem, uma forma de atuar que encanta e traz o público para dentro da cena, em cada trejeito, em cada gesto, cada marcação, cada fala, um trabalho sofisticado sobre o que é ser ator, um Homem de Teatro que se entrega em cena e vive aquilo tudo, sendo visível no rosto do público tamanha luz. Jones Abreu Schneider faz o contraponto; sua personagem é o apoio de toda a história, que se funde com seu sangue nos olhos em cena, a personificação da resistência do artista e da arte, a raça, o fogo, que também nos ilumina. Uma dança. Um Tango.



A dramaturgia de Santiago Serrano é profícua e atravessa gerações, tem um estilo próprio e uma assinatura, suas personagens são sempre densas, cheias de camadas e de humanidade, suas peças sempre levam a reflexão sobre o ser humano, o que fazemos aqui e como podemos ser melhores, uma produção de textos em profusão e qualidade, que nunca se repete nem fica datado. A direção de Sérgio Maggio é orgânica e limpa, preenchendo o texto de Santiago em uma montagem linda e cuidadosa, feita com muita vontade e profissionalismo, também uma dança, Dramaturgo e Diretor, um Tango!

A importância de um abraço e de se emocionar!


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Fotos: Hugo Rila